Pandemia, alteridade e educação

03/08/2020 21:05

Pandemia, alteridade e educação

Apoliana Regina Groff

Ofereço neste breve ensaio, sentipensares de um corpo docente pandêmico. Um corpo que possui privilégios que possibilitam certo distanciamento do encontro com o vírus, mas que não está imune aos efeitos e aos afetos provocados pela pandemia. Você poderia perguntar: mas alguém está imune? Estar imune significa, nesta escrita, possuir um corpo com mecanismos de defesa aos impactos coletivos da pandemia; um corpo que não é atingido ou afetado, apesar de estar dentro dela. Um corpo imune, é um corpo ensimesmado, não alterado em suas formas de sentir, pensar e agir mesmo diante de uma situação nunca vivenciada. Um corpo que toca a vida como se as mais de 90 mil mortes não estivessem aí, pois seu corpo e condição de vida, são usadas como referenciais para olhar a existência coletiva. Com isso, se torna um corpo alheio ao outro e ao que tem acontecido para além de sua bolha. Deste modo, sem o encontro com os afetos da morte-vida pandêmica, muitos corpos tem se tornado imunes a ela.

Mas é possível um corpo estar imune ao que está acontecendo em nosso país? Nos termos acima, sinto que sim e não se trata de uma ficção episódica da série “Black Mirror”. Trata-se de corpos que vivem ao nosso lado, perto ou distantes, (des)conhecidos, mas que de forma forte ou tímida, expressam sua imunização. Por isso, sinto que existem sim muitos corpos imunes a pandemia. Não ao vírus, mas ao que a pandemia tem escancarado e produzido. Mas falo aqui de corpos que há muito mais tempo já são imunes e blindados às mazelas da pobreza, às dores das opressões e violências que afetam dia após dia milhares de corpos em nosso país. Corpos imunes, corpos intactos cuja segurança de elite os possibilita observar a pandemia apenas como uma situação momentânea de incerteza econômica, preocupação com a própria saúde ou mesmo como uma oportunidade.

No entanto, em nosso país, a insegurança diante da vida não é uma história de exceção iniciada com a pandemia. Para os corpos marcados pelas desigualdades e opressões de classe, gênero e raça, o que existe é uma vida inteira de inseguranças: desemprego, baixa renda, falta de acesso a saúde, violência doméstica, desesperança e medo. Para estes corpos, já brutalmente violentados e negados em seus direitos, a morte tem chegado em elevados números na pandemia, mas também antes dela quando falamos de corpos jovens negros. Mortes anunciadas, antes e durante a pandemia!

A imunidade aos efeitos coletivos da pandemia, neste sentido, é fortalecida com doses diárias de racismo, negacionismo e obscurantismo, permitindo que milhares de corpos e suas histórias, sejam apenas estatísticas no gráfico da morte; corpos sem nome apagados da história de um país já sem memória. Estas imunidades ou privilégios estruturais, permitem a determinados corpos permanecerem intactos as opressões, violências e a própria pandemia e a aceitarem que em um país desigual como o nosso seja possível cada qual cuidar de si, desde que o “deus capital esteja acima de tudo” – sem que isto não seja considerado uma política de morte. Corpos imunes tomam para si de forma inquestionável a palavra de ordem “fique em casa”. Um tipo de enunciado que lança para cada um(a) individualmente a responsabilidade pelo seu distanciamento do vírus. Corpos imunes a pandemia abraçam esta regra de isolamento na certeza de que sua parte estão fazendo. O que é também correto e necessário. Contudo, o cuidado de si individualista, tem distanciado estes corpos não só do vírus, mas também os tornado imunes e insensíveis a pandemia. Estamos diante da tentativa de instituir a gestão da “nova normalidade”. Ordem e progresso tem caminhado de mãos dadas com as supostas oportunidades geradas pela pandemia. Oportunidade + criatividade + esforço, enquanto tratamos de conviver com mais de mil mortes diárias, mais de 90 mil mortes em cinco meses. Alguns dizem: pessoas morrem todos os dias. Verdade. Mas em um país brutalmente desigual, quantas mortes, não só as por covid, poderiam ser evitadas?

Dia a dia diferentes instituições, entre elas as educativas, tem buscado formas de configurar uma “nova normalidade”. Já se passaram cinco meses, precisamos fazer alguma coisa, dizem. Uma volta a segurança que tinham e que é perspectivada, sobretudo, pelos corpos que possuem trabalho com boa remuneração, acesso à educação pública ou paga, moradia e boa alimentação. Algo precisa ser feito, reorganizado, não podemos parar a vida, ouço. Cinco, sete, oito meses parece muito quando se está vivo. Tempo de espera demasiado para os corpos que veem a vida como algo que deve caminhar para frente, pois a permanência em estado de espera produz desconforto, instabilidade, sensação de improdutividade e de dívida com o mundo do trabalho e dos estudos. “Não pense na pandemia, trabalhe e estude” – um déjà vu de muito mau gosto para os corpos não imunizados.

Uma pergunta tem ecoado: sairemos melhores desta pandemia? Esta pergunta coloca este corpo docente a pensar que se trata de uma pergunta atrelada à respostas que a educação poderia dar. Por este motivo, talvez a questão certeira seria: o que temos aprendido com a pandemia? Quais aprendizagens se vinculam às experiências da alteridade?

Para um corpo não imune, não é possível cuidar de si sem cuidar do outro e do mundo que vivemos. A questão é: conseguiremos encontrar, em algum momento desta pandemia, um sentido ético do cuidar coletivo similar ao já aprendido com a luta feminista quando gritam “nenhuma a menos”? Qual o papel da educação na construção desta ética do cuidado? Encontraremos um sentido para continuar ensinando e aprendendo durante a pandemia? Se encontrarmos este sentido e responsabilidade coletiva, talvez possamos sair um pouco melhores desta situação. Porém, não só a pandemia, mas também o pandemônio propiciado pelo sistema capitalista, racista e sexista, precisa ser igualmente enfrentado. E este corpo docente deseja profundamente que possamos criar uma potência intelectual, afetiva e política que nos permita aprender juntos(as) a ética de um cuidar de si e do mundo que confronte a barbárie produzida por doenças sociais e políticas que tem tirado o ar e a vida de milhares em nosso país há pelo menos quinhentos anos, e ainda neste exato momento!