O que está em jogo com a nova Política Nacional de Educação Especial?

13/10/2020 13:50

Maria Fernanda Diogo[1]

 

Em 30 de setembro de 2020 foi publicado o Decreto n° 10.502, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida[2]. O tema é “quente” e urge debatermos as alterações que este decreto produzirá no cotidiano escolar de crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência.

Para um melhor entendimento do que está sendo proposto, é prudente efetuar uma breve retomada histórica. Busquei ser sintética e restrita ao cenário nacional, evidenciando, contudo, que cada milímetro avançado em processos inclusivos foi conquistado – sempre! – por meio de árduas lutas travadas em searas sociais e políticas.

Foi somente com a Constituição Federal[3] que as pessoas com deficiência passaram a ter reconhecidos direitos integrais à Educação – referenciados, posteriormente, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[4] e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)[5]. Além disso, conferências internacionais, como a de Salamanca, em 1994, e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência, em 1999, ampliaram o debate inclusivo e, com base no modelo social das deficiências, lançaram olhares às peculiaridades e especificidades de aprendizado de todos/as os/as envolvidos/as no processo educativo. Este cenário de debates sociais e políticos culminou na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI)[6], em 2008.

A PNEEPEI assegura a inclusão escolar ao público da Educação Especial; reafirma sua transversalidade (da Educação Infantil à Superior); torna obrigatória a matrícula de estudantes com deficiência na rede regular de ensino, bem como a oferta das condições necessárias para que estes/as frequentem as aulas e obtenham êxito nos estudos; prevê a formação docente para o atendimento educacional especializado, bem como a qualificação dos demais educadores, com a participação da família e da sociedade.

Ilude-se quem acredita que a educação inclusiva beneficia exclusivamente as pessoas com deficiência – para tornar a sociedade mais solidária e tolerante é crucial a todos e todas (re)conhecer e respeitar a diversidade humana – e processos inclusivos devem ter início no âmbito escolar. Eu, pessoa sem deficiência, não tive colegas com deficiência no Ensino Fundamental e Médio, perdi a chance de me constituir como pessoa e cidadã tendo a diferença como parâmetro. A escola deve ser um lócus de aceitação da diversidade, da alteridade e da inclusão, posto configurar-se um ambiente plural por natureza, espaço educativo de constituição de sujeitos autônomos e críticos[7], mas esta perspectiva não está “dada”, pois a lógica dos sistemas de ensino é tradicionalmente marcada por uma visão determinista, mecanicista e reducionista.

A PNEEPEI resolveu e consolidou a inclusão escolar em nosso sistema de ensino? Não! Mudanças culturais, sociais e nos processos de formação docente levam tempo para darem bons frutos e demandam investimentos financeiros. Analisamos[8] em outro estudo os dez anos da implementação da PNEEPEI e evidenciamos progressos e a persistência de desafios, tais como aumentar os investimentos em infraestrutura nas instituições de ensino, investir em formação continuada para todos/as os/as profissionais da educação, fomentar trabalhos em equipe e ampliar o acesso dos/s estudantes aos apoios multiprofissionais, entre outros, visando qualificar o atendimento pedagógico inclusivo.

Mas afinal… o que está em jogo na nova a Política Nacional de Educação Especial? O título traz uma perspectiva “equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”, mas o texto do decreto é uma afronta a todas as lutas e conquistas que culminaram na PNEEPEI, pois este se contrapõe à uma ideia radicalmente inclusiva – radical no sentido de raiz, aquilo que dá a base e sustentação. Se escolas de ensino comum e salas de recursos multifuncionais fizeram avançar a educação inclusiva, sua substituta, na contramão, incentiva salas e escolas especiais, exclusivas às crianças com deficiência. Não garantir a permanência de estudantes com deficiência no ensino regular é nocivo para esta população porque eles/as se beneficiam muito – ou seja, aprendem e desenvolvem – com as dinâmicas escolares e com o convívio com os pares e é nocivo para toda a comunidade escolar porque deixamos de ter a diferença como um valor! Este retrocesso, ainda, contraria a Constituição Federal, o ECA, a LDBEN e as convenções e acordos internacionais das quais o Brasil é signatário. Ao invés de investir em formação docente, infraestrutura e apoios, segregam-se os/as estudantes com deficiência com base em apelos neoliberais!

Este decreto deve ser revisto/revogado, trazendo para o centro do debate as pessoas com deficiência, principais interessadas no assunto. Desde os anos 1970, o movimento “Nothing about us without us” (Nada sobre nós sem nós) vem fomentando a participação destas nos espaços que decidem as suas vidas. Educadores/as em geral, educadores/as especiais, pessoas com deficiência e suas famílias devem ser chamadas para deste debate – e ouvidas! Não podemos permitir retrocessos de 40 ou 50 anos nas lutas inclusivas.

_____

 [1] Agradeço às colegas Juliana Silva Lopes e Marivete Gesser pela leitura crítica a este texto.

[2] BRASIL. Decreto n° 10.502/20. Brasília: Poder Executivo, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-setembro-de-2020-280529948. Acesso em 07 out.2020.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 07 out.2020.

[4] BRASIL. Lei n° 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em 07 out.2020.

[5] BRASIL. Lei n° 394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1996. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em 07 out.2020.

[6] BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16690-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192. Acesso em 07 out.2020.

[7] MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão Escolar: o que é? por quê? como fazer? 2. ed. Cotidiano escolar: ação docente. São Paulo: Moderna, 2006.

[8] DIOGO, Maria Fernanda; SILVA, Tábata Sell da. Dez anos da Política Nacional De Educação Especial na perspectiva de professores de escolas públicas. Anais do Colóquio Internacional de Educação Especial e Inclusão Escolar. Florianópolis: Galoá proceedings, 2019. Disponível em: https://proceedings.science/cintedes-2019/papers/dez-anos-da-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-de-professores-de-escolas-publicas. Acesso em 07 out.2020.