Transgredir
Rudinei Luiz Beltrame
O verbo transgredir facilmente é encontrado nos dicionários como um ato de “desrespeitar uma ordem, uma lei, um procedimento, infringir, transgredir uma norma social”. A transgressão no contexto de escolarização recebe uma conotação pejorativa de indisciplina, atribuída geralmente por adultos aos estudantes que vivenciam uma relação conflituosa. O transgressor tende a ser responsabilizado pelos seus atos, tendo como consequência a aplicação de medidas corretivas que buscam ajustá-lo à “norma social”.
Ao longo da história, muitos ousaram transgredir e suas marcas produziram fissuram na ordem social. Em diferentes campos da arte, ciência, política e até mesmo na religião tiveram suas trajetórias marcadas pela transgressão. Pessoas como Martin Luther King, ativista e político que ousou não se subjugar ao racismo e tornou-se um dos maiores líderes do movimento pelos direitos civis. Junto com ele, Ângela Davis, Nelson Mandela, Zumbi, Dandara dos Palmares, perseguidos e presos por regimes segregacionistas. Outro exemplo de transgressão é Antonieta de Barros, quando a política era feita apenas por homens brancos, ousou se candidatar e ser eleita a primeira mulher negra deputada do Brasil.
A pergunta que se segue é: porque a transgressão tornou-se algo tão pejorativo no contexto da escolarização na modernidade? Considero que para compreendermos a transgressão não podemos analisá-la como algo individual, mas sim uma ação que envolve, no mínimo, dois ingredientes: o sujeito e as ações normativas. Portanto, a transgressão é um fenômeno genuinamente político ligado aos processos de dominação social.
As ações normativas sustentam-se na ideia de que existem práticas culturais, determinadas históricas e socialmente, que constrói uma leitura sobre a condição humana na qual formas de vida passam a ser defendidas e reconhecidas. Enquanto outras formas de singularidade que não se encaixam nessas características hegemônicas passam a ser assujeitadas pela produção de um conjunto de justificativas que legitimam práticas de exclusão, violência e até mesmo o extermínio daquele não reconhecido como importante para o processo de constituição de sujeito[1].
Os sujeitos que apresentam condutas desviantes a uma norma hegemônica passam ser classificados como perigosos, imorais, indesejados, portadores de anomalias que precisam ser tratadas e corrigidas. Problemas que fazem parte do cotidiano das pessoas, com origem social e política, são transformados em problemas singulares do próprio indivíduo. Entender a transgressão como um fenômeno genuinamente político, é colocar em xeque a naturalização dos processos excludentes que produzem desigualdade, formas de humilhação e opressão.
Trazendo para o contexto escolar, existe um estágio do desenvolvimento no qual a criança ingressa na escola, e a relação com o adulto torna-se diferente. Ela passa a ter deveres a cumprir, tarefas a executar, rotinas, etc. Nesse momento, o estudo torna-se o intermediário de todo o sistema de relações da criança com as pessoas que a cercam. A escola pode ter um papel fundamental para formação da cidadania, ou seja, o exercício pleno dos direitos em uma sociedade democrática, com participação social efetiva, de forma crítica e consciente. Porém, será que a escola está preparada para essa função?
Algumas narrativas, construídas no exercício de pesquisa-ação mostram que por vezes, as falas das infâncias e adolescências tem sido silenciadas pelo discurso do adulto. Certa vez, enquanto atendia uma estudante encaminhada pela escola, pergunto a ela se sabia o significado de estar ali. Ela respondeu: “eu nem sabia o que era, não sabia o que fazia e nem sabia que existia. Quando era pequena, vi minha mãe tocar nesse assunto, mas eu pensava que era só para doente”. Outra estudante encaminhada pela escola com diagnóstico de “déficit de atenção” me conta sobre a abordagem de suas professoras: “essa professora que eu tenho agora é boa. A outra que eu tinha não era, não explicava direito. Eu tinha vergonha de não saber ler!”. Uma terceira passagem, dessa vez um menino me fala: “uma coisa que me deixa feliz é conseguir estudar. Minha mãe fala que isso é bom pra mim. Uma coisa que me deixa triste é morar no morro”.
Essas falas soam como gritos de resistência e transgressão que emergem entre os muros da escola. Apesar de singulares, essas narrativas nos remetem a pensar a humilhação decorrente da ineficiência de todo um sistema que corrobora para criar as dificuldades. Ter um lugar na carteira da sala de aula não necessariamente garante ao estudante o direito de ter acesso a uma educação de qualidade. Somado a isso, a precarização das condições de trabalho do professor, atrelado a uma formação aligeirada e muitas vezes de pouca qualidade, contribuem para tornar a humilhação pública e direcionar para outro lugar, como se o espaço de aula não fosse digno do estudante aprender e se desenvolver.
Essas cenas desencadeadas no cenário educacional incidem sobre crianças/estudantes com queixa escolar e que, em muitos momentos, trazem em suas expressões o ato de insulto. Não é fácil separar um sofrimento individual de um sofrimento que é histórico, e geralmente é disso que se trata quando o assunto é relacionado a pobres, pretos e loucos. Sofrimentos originariamente sociopolíticos, formados em longo tempo, que formam inibições passíveis de ser entendidas como problemas de personalidade individual. Problemas históricos e políticos não se produzem indiferentes psicologicamente e geram sintomas, angustias, que por se manifestarem no corpo tende-se a associar a algo do indivíduo. Porém, todo sofrimento tem na sua ancestralidade as marcas dos golpes, das espoliações dos nossos antepassados. Assim, a dor que machuca o humilhado nunca é meramente a dor de um individuo, porque a dor é nele a dor velha, já dividida entre ele e seus irmãos de destino (Gonçalves Filho, 2007).
É preciso criarmos em nossas práticas cotidianas um exercício de indignação em respeito às angústias e sofrimentos que perturbam o corpo e a consciência. Portanto, devemos ser céticos à obediência servil, pois quem nos pede esse tipo de comportamento são os mesmos que gozam do privilégio em abundância. Por outro lado, devemos nos educar constantemente para a obediência daquilo que nos parece mais justo e digno. A obediência aos valores da vida, da pluralidade de ideias que nos permite habitar com a diferença. Esse tipo de obediência exige que transgrida a uma ordem que nos oprime.
Transgredir diante de uma ordem que desconsidera a educação como uma prática libertária é um caminho na direção da construção de um processo civilizatório, portanto, necessária. Transgredir frente a uma ordem social excludente da diversidade dos povos, das etnias, que subjuga uns aos outros criando uma hierarquia entre raça, gênero, classe, deficiências, territórios e todas as demais pessoas que não se encaixam nessa ordem, me parece um caminho possível para um mundo mais digno e justo. Uma transgressão vinda de uma obediência servil pode ter efeitos revolucionários.
Referência:
Gonçalves Filho, J. M. (2007). Humilhação social: humilhação política. In: SOUZA, Beatriz de Paula (org.). Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, p.187-222.
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[1] Ver mais em: Butler. J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.