Normal não é legal
Ao longo dos últimos meses, como psicóloga, tenho sido requisitada a falar sobre saúde mental e, mais especificamente, sobre as influências da pandemia em nossa saúde mental. E, como psicóloga escolar, tenho sido provocada a pensar sobre a condição vivenciada por estudantes e professores que viram sua relação, e seus modos de ser-estar nessa relação, modificarem-se significativamente, num processo de ensino-aprendizagem mediado, também, pelas telas de computadores e smartphones, e pela qualidade (ou ausência dela) da velocidade da internet.
Pesquisas recentes[2] têm demonstrado um aumento significativo, nos últimos meses, dos índices referidos de ansiedade e preocupação, e especialistas tem dado o alerta sobre a importância da atenção à saúde mental durante e após a pandemia da Covid-19. Mas, o que significa estar mentalmente saudável? E, mais especificamente, o que significa estar mentalmente saudável num momento de dificuldades, perdas e luto?
Com base nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, podemos compreender que o que se entende por saúde mental é resultado da ação simultânea de processos intrapsíquicos e sociais[3]. Desse modo, a partir de uma interpretação livre e de forma muito resumida, podemos entender saúde mental como a capacidade de lidar com nossos afetos e de elaborá-los, de acordo com o contexto histórico.
Portanto, estar alegre e despreocupada(o) num momento de perdas, medo, insegurança, tristezas e luto, é um indicativo tanto ou mais preocupante de necessidade de atenção à saúde mental do que se apresentar ansiosa(o) ou estressada(o). Esse esclarecimento se faz necessário porque, nos últimos tempos, tem sido difundida a noção de que saúde mental é o mesmo que felicidade. Nada mais equivocado!
Se saúde mental está relacionada à capacidade de lidar com nossos afetos de forma coerente com o contexto em que vivemos, como nos manter saudáveis em uma realidade adoecedora?
Nesse sentido, não podemos perder de vista que essa é uma problemática social e não individual. Não estamos falando de indivíduos acometidos por transtornos mentais como depressão, transtornos de ansiedade – para falar apenas dos mais frequentes – em razão de meros desequilíbrios químicos no cérebro. Estamos falando de um sofrimento com base em questões políticas, econômicas e culturais.
A chave central de entendimento aqui é a noção de constituição humana, a partir de relações sociais que se estabelecem em condições concretas de existência, mediadas pela cultura; portanto, para nós, seres humanos, não é possível existir fora da coletividade, da materialidade da (re)produção da vida e da história[4].
Nesses meses de pandemia, vimos nossas rotinas serem alteradas de forma intensa e muito abrupta. De um dia para o outro, nossas atividades habituais se tornaram possibilidade de risco iminente à vida: ir ao trabalho, à escola, encontrar os amigos, dar um abraço – a recomendação é de que não façamos nada disso, ou melhor, de que façamos à distância (e os abraços foram substituídos por emojis e gifs). Expressões como “home office”, “videoconferência”, “ensino remoto”, já presentes em nossos vocabulários, tornaram-se palavras de ordem que passaram a regular nossas rotinas e nossos relacionamentos.
Em meio a tantos desafios e incertezas, começamos a querer de volta a segurança proporcionada pelo conhecido, pelo habitual. Passamos a desejar que “as coisas voltem ao normal”. Assim, uma nova expressão surgiu e tomou força: “novo normal”, entendido como sinônimo de retomar a vida em sua cotidianidade; e muito esforço tem sido empreendido, por muitos de nós, nessa tentativa.
“Normal”, apesar de atributo constitutivo de nossas identidades – a própria psicologia enquanto ciência se funda na determinação do normal/anormal[5] – é também sinônimo de algo comum, ordinário; e num mundo que promete [“a quem faz por merecer”] a condição de “ser especial”, normal não é dos adjetivos mais cobiçados. Assim, o marketing, nos últimos meses, passou a nos seduzir com promessas de “novo extraordinário”; “novo espetacular”.
No entanto, a “novidade extraordinária” prometida se trata da aquisição de um novo produto; de uma nova mercadoria a ser consumida para que a roda do mercado continue girando e moendo a vida enquanto gira[6]… Quero propor, a partir daqui, algumas questões problematizadoras:
O que pode haver de normal num mundo no qual, no intervalo de dez meses, um milhão de pessoas morreram[7] de uma doença altamente contagiosa, mas potencialmente evitável?
O que pode haver de normal num mundo em que muitos de nós se veem obrigados à escolha impossível entre passar fome ou pegar (e transmitir) Covid-19?
O que pode haver de normal num mundo no qual a existência humana é meio para fins de acumulação financeira?
Ao invés de nos esforçarmos para fazer com que a excepcionalidade trágica desse momento vivenciado com a pandemia se torne habitual – “novo normal” – precisamos ter a coragem para encarar as desigualdades que a Covid-19 escancara, as ignorâncias, o egoísmo, a mesquinharia; nossa pequenez, enfim.
Nossa saúde mental depende da qualidade das relações que estabelecemos e da saúde do planeta que habitamos; dessa forma, soluções individuais são passageiras e ilusórias. É preciso deixar de banalizar o que não pode ser banalizado e compreender, de uma vez por todas, que para os seres humanos: “eu” é sinônimo de “nós”; e o que se entende por individual é gestado na coletividade.
Ao invés de nos dedicarmos a tentativas incessantes de normalizar a existência humana, capturando-a em fragmentos isolados e estáticos; passemos a nos dedicar a celebrar a vida, a nos encantar com a beleza da sua diversidade e de seus infindáveis movimentos. Há tempos tenho um bordão: “normal não é legal!”.
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[1] Agradeço a leitura prévia cuidadosa de Maria Fernanda Diogo.
[2] Zorzetto, Ricardo (2020). Tempos de incerteza: mudanças na rotina ocasionadas pela COVID 19 podem aumentar casos de sofrimento emocional e transtornos mentais. Revista Pesquisa FAPESP. São Paulo, ano 21. n. 294. p. 18-23, agosto, 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/tempos-de-incerteza/
[3] Rabelo, Fabiano C.; Dias, Reginaldo R.; Carvalho, Gustavo de O.; Martins, Karla P. H. (2018). Esquizofrenia, Clínica e Saúde Mental na Psicologia Sócio-Histórica e na Psicanálise. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 229-247. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652018000200003
[4] Zanella, Andrea (2020). Fundamentos Epistemológicos da Psicologia Histórico-cultural: dialogando com a “Ideologia Alemã”. In: Zanella, Andrea. Psicologia histórico-cultural em foco: aproximações a alguns de seus fundamentos e conceitos. Florianópolis: Edições do Bosque/UFSC. p. 19-27. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212717
[5] Para uma leitura crítica da constituição da psicologia enquanto ciência recomenda-se a leitura de: Patto, Maria Helena S. (2015). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Intermeios.
[6] Para o aprofundamento da discussão acerca dos processos de subjetivação nas tramas do neoliberalismo, consultar: Foucault, Michel (2008). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.
[7] BBC News (2020). Um milhão de mortos por Covid-19: gráficos mostram onde o coronavírus se espalha e mata mais. 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54339632