Agonia do Eros Docente
Rogério Machado Rosa
Sou professor antes mesmo de ser psicólogo. Ainda na metade da graduação, fui contratado para dar aulas de Psicologia da Educação em um Curso de Magistério, na Rede Estadual. Ali trabalhei por 6 anos. Fui contagiado por “Eros Pedagógikos” (GALLO, 1998), me apaixonei. Daí recorri à licenciatura em Psicologia, algo que eu não vislumbrava no início do curso. Depois veio o mestrado em Educação e, com ele, um voo com aterrissagem na docência do Ensino Superior. Em seguida ingressei no doutorado, também em Educação. Paralelamente e posteriormente a ele, permaneci exercendo o ofício de professor, bem como o de Psicólogo Escolar e Educacional.
Sinto haver uma linha feiticeira, dançarina e/ou artística (CORAZZA, 2006) transversalizando minha trajetória de professor. Ela parece funcionar como representante do meu conatus, quer dizer, a capacidade de “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar no seu ser” (ESPINOSA, 2013, p. 77). Essa capacidade de perseveração resulta na forma atual do ser, reitera o autor. Resulta no meu conatus docente, neste caso. E foi ela quem trouxe para o meu “corpo docente” o encantamento dos apaixonados, o fulgor criativo das crianças e a esperança colorida pelas manhãs de sol, chuva e frio.
Hoje sou um professor que se dedica, principalmente, à formação de professores/as. No exercício diário da docência, busco construir, cultivar e propagar esse espírito/conatus tramado pela força da linguagem ética, política, poética, afetiva, literária… Ele tem sido fundamental no enfrentamento dos desafios e na assunção das responsabilidades que a ocupação desse lugar requer. É ânimo para a construção de uma vida docente bela. Embora eu sinta que cada vez mais é fulcral perguntar pelo que pode aumentar ou diminuir a potência do meu/nosso conatus docente, sobre o que traz para o meu/nosso corpo/ser docente alegria e saúde ou tristeza e adoecimento.
Quando comecei revirar o material/memória para escrever esse ensaio, constatei que em breve fará um ano que estou sem viver a docência presencial, na sala de aula física. Senti saudades da sensação de frescor e da alegria típicos dos encontros com as/os estudantes. Percebi o meu espírito/conatus docente, tão frequentemente enfeitiçado e feiticeiro, um tanto embotado, rebaixado. Entre a sensação de esvaziamento de sentidos e a luta para produzi-los, percebo que estou experimentando na carne a agonia do “Eros Docente”. Inquieto, me perguntei: será que estou cansado de conversar com as/os estudantes diante de uma tela? Estou cansado de às vezes parecer simplesmente conversar com a tela? E tem ainda a atual gestão necropolítica da pandemia. O que ela me causa? Como tudo isso me/nos afeta e diminui a minha/nossa capacidade de pensar/viver a docência?
Sabe-se que o distanciamento social é soberano nesse momento. Ele salva vidas! Mas onde buscar alegria para o meu/nosso conatus docente nessa época tão eivada de paradoxos? Como mantê-lo vibrante e enfeitiçado pela força da vida quando sou/somos ameaçados pelas deliberadas políticas de morte? Como não me ressentir nos momentos em que as violências políticas, institucionais e sociais me atravessam e me fazem experimentar certa sensação de impotência?
Gostaria de ter respostas objetivas e práticas para essas perguntas, mas não tenho. Isso é perturbador. Sei, entretanto, que elas são indispensáveis para o exercício (auto)reflexivo sobre o tempo presente, pois a mim funcionam como instrumento mobilizador da análise crítica das distopias que nos afligem. São perguntas que também intensificam minha conexão com as/os colegas professores/as, tanto do Ensino Superior quanto da Educação Básica. Isso as faz insistentemente reaparecerem e ecoarem no meu corpo docente. E seguem: a sensação de fastio diante da tela seria uma experiência comum entre as/os colegas professoras/os? Como anda a saúde mental, social, física e pedagógica das/os colegas de profissão? Temos encontrado tempo e espaço para cuidar do espírito/conatus arteiro e criador inerente ao nosso ofício? Quem está cuidando do/a professor/a? E as suas utopias pedagógicas e existenciais, em que frequência pulsam?
Se por um lado os imponderáveis da pandemia da Covid-19 têm me/nos logrado a possibilidade de viver o ensino presencial, por outro lado a docência no formato remoto, com toda a sua complexidade e controvérsias, se tornou uma saída (oxalá transitória). Mas é fato que recorremos a ela para não abandonarmos nossos/as estudantes aos seus próprios recursos, para salvarmos vidas, conforme nos ensina Hannah Arendt (2002). Isso não significa, evidentemente, a partilha da convicção de que este é o melhor caminho, mas talvez seja e expresse o melhor das minhas/nossas possibilidades até aqui. Talvez seja a expressão do meu/nosso conatus docente se esforçando, duelando, para perseverar sua existência, para expandir e afirmar a vida. Raciocinando/sentindo assim, encontro uma razão legítima para me alegrar. E a alegria é um bem social, é ato político revolucionário no enfrentamento à política de tristeza fascista.
O olhar atento para as variações do meu conatus docente se transformou em uma questão pungente. Parece dizer de um “nós”? Dizem de um coletivo docente com seus respectivos conatus mais rebaixados do que altivos na contemporaneidade? Foi assim que na escritura desse ensaio, a opção pela metodologia da escrita (auto)biográfica assumiu um contorno fundamentalmente ético-estético-político. Já que esse modo de pensar/sentir/escrever articula “as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo” (CAETANO, 2016, p. 33); e assim potencializa a criação e a recriação das tramas constitutivas das nossas identidades individuais e coletivas. Trata-se, portanto, de uma relação de criação em que os valores estão voltados para a alteridade e para a produção dos nossos territórios existenciais. Perspectiva esta nomeada por Guattari (1992) de ético-estética-política.
A partilha de excertos narrativos (auto)biográficos relativos às minhas experiências de professor/psicólogo, com ênfase nos (des)encantamentos no tempo histórico presente, constitui-se como uma oportuna estratégia no combate às formas fascistas de vida que me/nos assombram. Apresenta-se como uma espécie de exercício público de reflexão filosófica, ética, política e pedagógica, já que guarda profunda relação com a narrativa da minha/nossa formação humana na pólis. Diz, por fim, de um movimento pelo qual busco/buscamos me/nos libertar, “com esforços, hesitações, sonhos, ilusões daquilo que quer passar por verdadeiro ao desejo” (FOUCAULT, 2001, p. 86).
Mas se “o desejo uma vez criado, não conhece sono nem trégua nenhuma” (VALÉRY, 2005, p. 43), ele pode me/nos insuflar de alegrias crítico-criativas que inspirem a invenção coletiva de outros espaços e tempos pedagógico/existenciais: mais encantados, mais feiticeiros e mais apaixonados, assim como nos ensinam as crianças. Então a minha/nossa luta buscará manter viva a paixão típica dos começos, para continuarmos afirmando a vida na e pela docência. Pois afinal, como já nos advertiu Foucault (2010, p. 4), “não é preciso ser triste para ser um/a militante” professor/a.
REFERÊNCIAS
CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
CAETANO, Marcio. Performatividades reguladas: heteronormatividade, narrativas biográficas e educação. Curitiba: Appris, 2016.
ESPINOSA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica. 2013.
FOUCAULT, M. “Prefácio (Anti Édipo: introdução à vida não-facista)”. In: MOTTA, Manoel Barros de (org). Repensar a Política / Ditos e Escritos VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
GALLO, Sílvio Donizete. Eros Pedagógikos: em torno de uma erótica didática. Libertárias, São Paulo: imaginário, n. 3, p. 53-56, set. 1998.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005.