Como construir uma escola que acolha a todas as pessoas?
Marivete Gesser
A escola, pelo menos no Brasil, nunca foi para todos. Na educação básica, esta instituição tem excluído sistematicamente estudantes que de alguma forma não se enquadram no ideal de sujeito normativo (Patto, 2015). A aprovação da nova Política Nacional de Educação Especial em 30 de setembro de 2020 pelo governo federal Brasileiro, a qual permite a segregação de estudantes com deficiência em instituições de ensino especiais, reitera a primeira afirmação do texto. Destaca-se que esse ideal de estudante a qual a escola está preparada para acolher é o de alguém que seja física e mentalmente capaz para se adaptar aos espaços e às práticas pedagógicas que pouco se modificaram no que se refere ao acesso ao conhecimento e ao acolhimento das diferenças. Por meio de suas práticas, a escola não exclui somente com base na capacidade de aprender, mas também pela intersecção de processos discriminatórios tais como o racismo, o sexismo, a LGBTIfobia, o capacitismo e o classismo, que produzem diferentes enquadramentos dos estudantes que estão lá inseridos, vulnerabilizando uns e privilegiando outros.
No Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC (NED), que venho coordenando desde 2017, temos pensado muito sobre a relação desses processos históricos de exclusão reproduzidos no interior da escola e nas relações destes com o capacitismo. Além disso, temos produzido pesquisas focadas na construção de práticas anticapacitistas. Mas talvez o leitor deva estar se perguntando: O que é o capacitismo?
O capacitismo é um conceito trazido para o Brasil pela antropóloga Anahi Guedes de Mello com um intuito de nomear processos discriminatórios vivenciados por pessoas com deficiência. Fiona Capmbell (2009) destaca que esse processo é baseado no modelo biomédico e opera como um sistema que hierarquiza e oprime corpos com base nas capacidades. Embora as pessoas com deficiência são as que mais sofrem os efeitos do capacitismo, todas as pessoas que não se enquadram dentro do que é esperado em termos de capacidade, sejam estas mulheres, pessoas LGBTI, indígenas e negras, por desviarem do ideal universal de ser humano – que tem como principais parâmetros ser homem, branco, do norte global, cis, heterossexual e totalmente independente – são patologizadas e entendidas como menos capazes.
Com base no diálogo com autores como Fiona Kumari Campbell, Robert McRuel, Gregor Wolbring e Sunaura Taylor, em texto produzido em coautoria com Pamela Block e Anahi Guedes de Mello, partimos do pressuposto de que o capacitismo é estrutural e estruturante da sociedade. Ou seja, este condiciona, atravessa e constitui sujeitos, organizações e instituições, produzindo formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é reproduzido por um ideal de capacidade normativa que gera como efeito a compreensão de que corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, idosas, LGBTI e com deficiência são naturalmente menos capazes. Consideramos também que as capacidades normativas que sustentam o capacitismo são produzidas com base nos discursos biomédicos que, sustentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a reproduzir a capacidade para se afastar do que é considerado abjeção (corpos abjetos são aqueles que, por divergirem do que considerado típico da espécie, busca-se distanciar a todo custo). Ademais, nossos estudos apontam a estreita relação entre o capacitismo e sistema capitalista, uma vez que este é beneficiado com a busca constante da ampliação das capacidades humanas para o incremento da produtividade.
Os estudos que temos desenvolvido no campo da educação têm mostrado que estudantes que são atravessados pela intersecção entre sistemas opressivos como o capacitismo, sexismo, racismo, LGBTIfobia, colonialismo e classismo tendem a apresentar dificuldades de se enquadrar nas práticas educativas desenvolvidas na escola, as quais tendem a ser voltadas à adaptação dos corpos para a reprodução do sistema social vigente. Mas como subverter este modo como a escola tem estruturado suas práticas? Se a escola é uma instituição constituída por sujeitos que são atravessados e constituídos pelo capacitismo – que é estrutural e estruturante da sociedade, como podemos produzir uma escola anticapacitista?
Embora eu considere que este é um imenso desafio, acredito que uma estratégia importante é a de transformar os currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação. Temos realizado estudos interessantes no NED, tanto relacionados à contribuição dos estágios profissionalizantes em Psicologia Escolar e Educacional, como também nas contribuições da oferta de uma disciplina baseada no campo dos estudos da deficiência para a produção de fissuras no capacitismo. Nossos estudos apontam que a oferta de disciplinas voltadas à compreensão crítica de outros sistemas opressivos como o racismo, sexismo, LGBTIfobia e classismo, bem como no campo das políticas públicas e dos direitos humanos, também oferecem importantes subsídios teórico-metodológicos para darmos conta deste desafio.
Outra estratégia que temos voltado a nossa atenção se refere a produção de espaços e práticas educativas pautadas na perspectiva do acesso coletivo. O campo dos estudos da deficiência de matriz feminista – o qual tem como princípio a construção de espaços sem barreiras para corporeidades diversas – pode contribuir muito para que todos os estudantes sejam incluídos na escola. Elementos como à crítica ao ideal de independência e a incorporação da dependência e da interdependência como inerentes à condição humana desafiam a escola a acolher pessoas com diferentes características corporais e condições funcionais. A perspectiva interseccional do feminismo negro – que foi integrada aos Estudos da Deficiência de matriz feminista – também muito contribui para entender a complexidade das relações sociais produzidas na escola, muitas vezes opressoras de corporeidades que não reproduzem o ideal de sujeito moderno. A construção de pesquisas e práticas profissionais com as pessoas com deficiência, em consonância com o Lema do Movimento Político das Pessoas com Deficiência “Nada sobre nós, sem nós” também tem se mostrado muito importante para a construção de práticas anticapacitistas na escola.
Aprofundar os princípios e contribuições dos estudos da deficiência de matriz feminista com foco na perspectiva do acesso coletivo renderia outro texto. Para quem tiver interesse em conhecer mais sobre o campo dos estudos da deficiência, coloco abaixo o link de acesso a uma contracartilha de acessibilidade, construída por ativistas acadêmicos do campo dos estudos da deficiência aqui do Brasil (1). E sobre os estudos da Deficiência, para iniciantes, sugiro o Livro de Débora Diniz “O que é deficiência” (2) e o caderno temático “Psicologia e Pessoas com Deficiência” (3) elaborado pelo nono plenário do CRP-12 em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC. Também indico o capítulo de livro intitulado “Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola”, que será disponibilizado gratuitamente ainda neste ano (4). Por fim, indico os textos de “Politizar a deficiência Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag #ÉCapacitismoQuando no Facebook” (5) de Anahi Guedes de Mello e “PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual” de Marcia Moraes (6).
* Agradeço a leitura prévia e cuidadosa de Maria Fernanda Diogo e Juliana Silva Lopes
Indicações de Materiais
(1) Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia. Contracartilha de acessibilidade: reconfigurando o corpo e a sociedade. ABA; ANPOCS; UERJ; ANIS; CONATUS; NACI: Brasília; São Paulo; Rio de Janeiro,
- 14p. Link de acesso.
(2) Diniz, Débora (2007). O que é deficiência? São Paulo Brasiliense.
(3) Caderno Temático do Nono Plenário do CRP-12 “Psicologia e pessoas com deficiência”. Tribo da Ilha: Florianópolis. Link de Acesso.
(4) Gesser, Marivete (2020). Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola. Em: Leandro Castro Oltramari, Ligia Rocha Cavalcante Feitosa, Marivete Gesser (Orgs.). Psicologia escolar e educacional: processos educacionais e debates contemporâneos. (pp. 93-113) Florianópolis: Edições do Bosque UFSC/CFH, 2020. Link de Acesso.
(5) Mello, Anahi G. (2919). Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag #ÉCapacitismoQuando no Facebook. In: Prata, Nair; Pessoa, Sônia C. (Org.). Nair Prata e Sônia Caldas Pessoa, Desigualdades, gêneros e comunicação. (pp. 125-142). São Paulo: Intercom. Link de Acesso.
(6) Moraes, Marcia (2010). PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Marcia Moraes e Virginia Kastrup (Orgs.). Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. (pp. 26-51). Rio de Janeiro: Nau.
Referências
Campbell, Fiona Kumari. (2009). Contours of Ableism – The production of disability and abledness. Palgrave Macmillan, UK, 2009.
Gesser, Marivete, Block, Pamela, Mello, Anahi Guedes (no prelo). Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. Em: Gesser, M. Bock, Geisa L. K., Lopes, P. H. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV.
Patto, Maria Helena de Souza (2015). Produção do Fracasso Escolar: Histórias de Submissão e Rebeldia. Intermeios; 4ª edição.