Carta a uma professora inesquecível
Simone Vieira de Souza
Querida Dona Lourdes,
Hoje, 08 de março de 2021, a imprensa oficial atualiza o número de pessoas mortas por COVID-19 no Brasil. Mais de 265 mil. Insisto em manter a chispa utópica acessa. E numa tentativa agoniada, desde o ano de 2016, busco compor o front com os que lutam para além das telas e das páginas das redes sociais, procuro por algum nível de conforto no desamparo doloroso e sensação de uma história triste e [sem fim]… Ao considerar o que a minha pátria, nada gentil com seus filhos, tem produzido, registro a dificuldade de seguir. E para contrapor a sensação de terra arrasada, conecto com as memórias de um tempo que me ensinou sobre esgarçar os sentidos para poder ver grande, sentir grande, refletir grande… e só depois e sem pressa, ser caminhante. Essa memória e tempo trazem você, Dona Lourdes. Minha professora da primeira série. Por ser essa a memória, esse manuscrito só poderia ser um manuscrito-carta, endereçada para uma professora inesquecível. E por ser essa professora inesquecível, essa carta só poderia ser uma carta de amor.
Nos encontramos na Escola Básica Visconde de Mauá, que se localiza na cidade de Tubarão, estado de Santa Catarina, sul do Brasil, em uma vila dos ferroviários. Era uma escola ocupada por filhas e filhos de trabalhadores. Vivíamos no regime da Ditadura Militar, ano de 1979: Estado autoritário, educação tecnicista, o imperativo do controle e da disciplina dos corpos, dentro e fora da escola, dava o seu contorno. Eu tinha sete anos de idade e frequentava à primeira série. A imagem que se condensou foi você nos dizendo: “Quando aprenderem a ler, conseguirão ler o mundo”! Suas palavras desencadearam tanta urgência e possibilidade. Eu queria aprender a ler. Não! Mais do que isso, eu necessitava ler para escrever palavras, compreendê-las, e poder ler o mundo. Hoje quando revisito sua frase, algo me diz que se ancorava num certo pensador, bastante incompreendido e atacado ultimamente.
Sua sentença segue ecoando dentro de mim. E veja quanto tempo dentro do tempo se passou. Aliás, no que se refere ao tempo e suas marcas indeléveis, permanecer efetivamente e afetivamente com alguém, muito dependerá sobre a qualidade desse tempo-encontro-contato. Suponho ser esta uma chave importante, e que define quem seguirá conosco na categoria das pessoas inesquecíveis. De mãos dadas com você, e trilhando o [Caminho Suave] de uma cartilha adotada na época, que nada tinha de suave, tão pouco ganhava boniteza, desafios e convites, você produziu em mim, aos sete anos de idade, uma espécie de ponto luminoso. O que falava e o como falava, despertou em mim o gosto pelas coisas da escola e na vida fora dela, tão repleta de ambivalências.
Sabe, Dona Lourdes, algo me diz que você iria gostar de saber da mulher que me tornei e sigo a construir. Sou uma idealista humanista, aprendi com você e com outros inesquecíveis professores que há que se ter sonhos coletivos para seguir caminhante, desejosa, implicada e aguerrida na construção de um mundo mais justo para todas, todes e todos. Nas disputas da vida, desde criança, evidenciei com quem eu seguiria fiel e aliada, e a quem me oporia no embate. Viver reivindica um posicionamento franco. O contrário disso me produz estranhamento, desconfio de quem o faz, saio de banda e sigo atenta. Ah! Você tinha toda razão sobre o ato de aprender a ler como um instrumento que nos habilita a ler o mundo. Que coisa grande é isso, não é?!
Minha querida professora inesquecível, passados esses 42 anos da cena vivida, eu me encontro no capítulo em que a incerteza habita cada parágrafo, em que as páginas subsequentes parecem aumentar a tensão e o medo do por vir. Às vezes sou invadida por uma necessidade de interromper definitivamente a leitura, de fazer algo que me tire do contato do que os dados e as estatísticas insistem em denunciar. Nesse livro chamado Brasil, no ano de 2016, vivemos um golpe parlamentar, jurídico e midiático. O refrão síntese daquele momento nauseante e adoecedor, que mobiliza [ainda] tantos sentires, e traz a cena do espetáculo que foi amplamente explorado pela mídia golpista é: “Chegou a hora do grande acordo nacional com o Supremo, com tudo!”
Sobre a história que tenho construído nesse mundo, na medida em que leio, resenho, sofro, compreendo… compartilho um pouco do que entre os anos de 2016 a 2019 estive fazendo. Nesse tempo, a rua e a luta coletiva, foram espaços de morada mais constante. Na rua e junto do meu bando, gritei “Não vai ter golpe”, “Fora Temer”, “Ele Não”, “Não a PEC da morte”, “Não a reforma trabalhista”, “Não a reforma da previdência”, entre outras urgências – capítulos do mesmo livro que me refiro. Nossa poesia, bordões criativos, arte, amor, gentes de cores e mundo diverso, princípios, lutas, seguidamente perderam a batalha. E a cada rasteira, mais um soco no estômago me levava ao chão. O que se erguia primeiro puxava o Outro, de modo constante e insistente, assim foi. Assim tem sido até aqui.
Mas ainda quero dizer algo mais para você. Sigo sem respostas para uma porção de perguntas! Há ações indefensáveis nesse livro, e parece não haver síntese possível. Arrisco dizer que a ausência de respostas e indignação costuma me manter acordada. Me faz buscar o encontro com algumas pessoas, certo tipo de huMANOS, para compreender o que está em curso, buscar sustento, lutar de algum modo contra essa força que despotencializa a vida… porque “A gente combinamos de não morrer” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2016, p. 99). Pensar que você segue segurando a minha mão e que se eu cair, com sua voz firme e doce pedirá ao amigo que busque a caixa de primeiros socorros na secretaria, me leva para outro lugar, para o Brasil que quero. E, assim sigo – mesmo que por vezes cambaleante – por você, por todos que me antecederam, pelos que seguem compartilhando suas vidas esperançadas, e aos que virão…
Até sempre e com amor!
Ilha da Magia(?), num tempo de esperançar de um ano pandêmico.
EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
* Denise Cord e Célia Regina Machado [das pessoas inesquecíveis]. Minhas “escutadeiras”. O olhar de vocês melhora o meu, obrigada.