Licenciatura em Psicologia: notas sobre a face educativa da nossa profissão
Marta Corrêa de Moraes
A “leitura da quinzena” tem trazido contribuições importantes para pensarmos o tempo presente e, com isso, linhas de força que amarram um esperançar coletivo. “De parágrafo em parágrafo, aquilo que parecia alheio começa a existir em mim, como se fosse possível habitar um corpo que não é meu, um corpo diferente do meu, uma voz incógnita” (SKLIAR, 2014, p. 62). Como professora do curso de Licenciatura em Psicologia da UFSC, tenho insistido na dimensão educativa da nossa profissão e nas contribuições que a docência em Psicologia pode dar para os contextos educativos e de escolarização, notadamente neste tempo marcado por uma grave crise política e sanitária.
Apesar de muitas vezes negligenciado nos cursos de formação de Psicólogos/as, “o ensino é também, historicamente, um dos fortes referenciais de inserção da Psicologia na Educação” (SOLIGO e AZZI, 2008, p.64). Ademais, é preciso lembrar que entre rupturas e descontinuidades, a Psicologia ainda mantém presença na formação do magistério, no Ensino Técnico e no Profissionalizante, por exemplo. Contudo, se considerarmos o regular ou propedêutico, a pergunta de Barros (2007, p. 2007, p. 33) parece profundamente atual: “se o saber psicológico não compõe os projetos de educação básica e os/as próprios/as psicólogos/as não dão importância ao fato, o que isso significa? Para qual educação a psicologia seria relevante?”.
Pergunta insistente, que nos leva a examinar os conhecimentos acumulados pela nossa ciência e profissão e que podem, sim, no encontro com as infâncias e juventudes, provocar diálogos e reflexões pertinentes. Temas como direitos humanos, preconceitos, violências, racismo, processos de desenvolvimento-aprendizagem e medicalização da vida também figuram como contribuições importantes da nossa área. Mas, mais do que apresentar um conjunto de conhecimentos oriundos da ciência psicológica, urge indagar sobre quais saberes contribuem para o processo de reflexão dos/as jovens, bem como para produção de resistências, estesias e conhecimentos outros, dentro e fora das escolas.
Infelizmente a licenciatura em Psicologia tem sido preterida pelos/as estudantes ao longo da graduação. Muitas vezes isso ocorre por não ser a licenciatura uma proposta integrada à formação de psicólogas/os e por não (re)conhecerem o amplo espectro de atuações possíveis, a saber: “na construção de políticas públicas de educação, na educação básica, no nível médio, […] na educação continuada, em contextos de educação informal […], entre outros” (BRASIL, 2011, p. 05). Além disso, podemos considerar sua importância para muito além dos contextos anteriormente citados, pois os eixos que estruturam a formação de professores/as de Psicologia, no Projeto Complementar destinado a esses/as profissionais, parecem igualmente relevantes para qualquer área que a nossa atuação puder alcançar.
Somado a isso, não podemos esquecer que a oferta da Licenciatura em Psicologia é obrigatória[1] para as Instituições de Ensino Superior (IES). É uma escolha possível para o/a estudante, que pode cursá-la ou não. No entanto, desrespeita-se a legislação, muitas vezes, com o argumento de que as demandas do mercado não justificariam os investimentos nesta face da formação. Com isso, alijamos os/as graduandos/as do direito a um espaço formativo capaz de produzir articulações entre as dimensões política, cultural e histórica das questões educacionais e o exercício da docência em diferentes contextos. Conexões indispensáveis para a sólida formação pedagógica dos/as licenciandos/as e para uma docência atenta e comprometida com todas/os aqueles/as que há muito tempo vivem “ao sul da quarentena” (SANTOS, 2020).
Docência que continua a nos impor perguntas. Afinal, como nós, docentes e estudantes, temos nos apropriado da Licenciatura em Psicologia? Qual lugar ela tem ocupado nos nossos cursos de graduação? Têm, os/as licenciados/as de Psicologia, assumido o seu “ofício de professor/a” (LARROSA, 2018) e produzido sua docência a partir do envolvimento com a equipe escolar, as políticas públicas de educação e as tantas dificuldades que a escola apresenta? A divulgação e o debate acerca da licenciatura em Psicologia têm sido feita desde o início da formação, considerando sua contribuição para a atuação da/o psicóloga/o? Como o Sistema Conselhos e a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) podem ajudar nessa discussão? Quais rumos a licenciatura em Psicologia irá tomar?
O Art. 13 das DCNs para os Cursos de Graduação em Psicologia (BRASIL, 2011) – em que pese a aprovação, em 2019, da Revisão destas mesmas DCNs pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), Parecer 1071/2019, o qual aguarda homologação do MEC – indica que a Formação de Professores/as de Psicologia deve se dar em conformidade com a legislação que regulamenta a formação de professores/as no País. Estamos, pois, diante de um novo desafio para formação docente, qual seja: a entrada em vigor da Resolução que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Professores/as para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC – Formação); a qual deve ser implementada em todas as modalidades dos cursos e programas destinados à formação docente (BRASIL, 2019).
Tal Resolução passou a valer na data da sua publicação (dez. 2019), ficando revogada a anterior, CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015. O Art. 27 do referido documento fixa, ainda, o prazo limite de até 2 (dois) anos, a partir da data de sua publicação, para a sua implantação, por parte das IES. São discussões necessárias e urgentes que estão postas em jogo e a Psicologia não pode/deve se furtar a elas, sobretudo se entendermos, como bem nos ensinam Wiggers e Souza (2018), que a compreensão do projeto que se delineia para Educação em nosso país nos convoca e habilita a entrar em um campo que está em disputa.
* Agradeço a leitura atenta e cuidadosa de Apoliana Regina Groff, Rogério Machado Rosa e Maria Fernanda Diogo
Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 2/2015, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Brasília, Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, seção 1, n. 124, p. 8-12, 02 de jul. de 2015.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução n. 2/2019, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília, DF: 2019.
BRASIL. Resolução nº 5 de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. DOU 16/03/2011 – p. 19 – Seção 1- Diário Oficial da União, Brasília, df:2011.
BARROS, Carlos César. Reflexões sobre a formação de professores de Psicologia. Temas psicol., Ribeirão Preto, v. 15, n. 1, p. 33-39, jun. 2007. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2007000100005>. Acesso em 03 abr. 2021.
LARROSA, Jorge. Esperando não se sabe o quê: sobre o oficio de professor. Tradução Cristina Antunes. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
RODRIGUES, L. Z.; PEREIRA, B.; MOHR, A. O Documento “Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” (BNCFP): Dez Razões para Temer e Contestar a BNCFP. Revista Brasileira De Pesquisa Em Educação Em Ciências, 20(u), 1–39. 2020. Disponível em < https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbpec/article/view/16205> Acesso em 02 abr. 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra, PT: Almedina, 2020.
SKLIAR, Carlos. O ensinar enquanto travessia: linguagens, leituras, escritas e alteridades para uma poética da educação. Trad. Adail Sobral [et. al.]. Salvador: EDUFBA, 2014.
SOLIGO, A. F.; AZZI, R. G. A psicologia no Ensino médio. IN: Ano da Psicologia na Educação. Cadernos de Textos. Eixo 4. Brasília, Conselho Federal de Psicologia e Conselhos Regionais de Psicologia, 2008.
WIGGERS, Eliz Marine; SOUZA, Simone Vieira de. Licenciatura em Psicologia: reflexões sobre a atuação profissional. IN: CARVALHO, D. C. de; CORD, Denise; SGANDERLA, Ana Paola (Org.). Experiências docentes em psicologia: em foco o PIBID. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, Conselho Regional de Psicologia, 2018.
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[1] “As atividades referentes à Formação de Professores, a serem assimiladas e adquiridas por meio da complementação ao curso de Psicologia, serão oferecidas a todos os alunos dos cursos de graduação em Psicologia, que poderão optar ou não por sua realização” (BRASIL, 2011, p. 06).