A (des)continuidade possível
Desde meados de março de 2020, tenho acordado com a estranha sensação de não saber por onde começar a viver as horas renovadas pela noite. Não que eu de fato não saiba, afinal no dia anterior, graças ao meu papel social de profissional docente, recebi ou me coloquei tarefas a desenvolver on line, acionando o link enviado, password para uma live. Muitas das tarefas desenvolvidas envolvem outras pessoas, conectadas a partir de diferentes papéis, ao desafio de educar e educar-se nestes tempos. Dia destes, conversando com orientandas(os) sobre incertezas em relação à validação de atividades de estágio na modalidade remota, por mais de uma vez tive a sensação de que a conexão digital havia falhado e perguntei: “estão me ouvindo? Aparecem “congeladas” aqui pra mim!” De imediato, movimentos faciais e a resposta de que sim, estavam presentes, que a conexão não tinha caído. Constituirá o dia-a-dia do calendário excepcional afirmar presença e conexão ao mesmo tempo em que assumimos a retirada de nossos corpos dos espaços de formação e a ruptura do vínculo físico com os sujeitos atendidos .
Deste lugar docente, cada hora do relógio segue sendo ocupada como antes do distanciamento social imposto pela pandemia: trabalho – intervalo – trabalho – fim de expediente. Tic Tac, Tic Tac… o dia termina, cai a noite, os telejornais reafirmam o aumento do número de casos e de mortes no Brasil, a baixa porcentagem de pessoas em isolamento social, a indiferença das gentes às regras de distanciamento social e do uso de máscaras, o descaso e o descrédito em relação à ciência, a esperança da chegada de um antídoto a qualquer momento, a aposta na tal imunidade de rebanho, os casos de corrupção envolvendo compras superfaturadas de equipamentos e remédios, a necessária retomada das aulas em escolas e universidades, mediante protocolos de segurança… hora de dormir… hora de acordar – afinal, especialistas afirmam que é importante manter uma rotina durante a pandemia.
Um cenário em ruínas e, ao mesmo tempo, em reconstrução. Tem-se definido assim a contemporaneidade pandêmica. Um cenário que inclui escolas e contratos pedagógicos. Protagonistas de uma cena que queremos acreditar será breve, excepcional, docentes e discentes teremos que recriar o éthos educacional. Mesmo que já o antigo pouco nos contemplasse ou representasse, especialmente pelo caráter abstrato do conhecimento acadêmico, pouco afeito às relações com a prática e as realidades vividas.
Mas exatamente o que ruiu? E o que estamos sendo impelidos a reconstruir? O conjunto de ferramentas que temos disponíveis para este momento de reconexão com nossos papéis de educadoras(es) e de educandas(os) não nos permite partir destas questões. Antes, nos impele a uma atitude calculista, burocrática, adaptativa e excepcional. Seremos virtualmente as(os) mesmas(os) docentes e discentes, reforçadas(os) em seus papéis assimétricos, vinculadas(os) a um contrato pedagógico marcado por um conjunto de afazeres habituais, controladores de assiduidade, participação, nota?
Não seria este o momento de reconhecer que estamos no mesmo barco da (des)continuidade, que não temos as respostas ou pelo menos que as perguntas hoje são outras e superam nossa capacidade de respondê-las? Não seria este o momento de convidarmos uns aos outros para a reconstrução do éthos educacional? De fazer do cotidiano, do vivido e experimentado, questão? Quem está convocado à esta cena educativa excepcional? Qual a continuidade possível hoje, depois que aproximadamente 120.000 vidas foram interrompidas pela COVID 19 no Brasil? Quem estará presente neste cenário remoto, sem cheiros, gostos, cores, corpos? Como lidar com a ressonância das ausências de fato – evasão escolar que chama, né? e das ausências vividas por trás das câmeras – de toque, de olhar, de sorrisos síncronos, de cumplicidade, de aconchego – mantendo relações de ensino e aprendizagem efetivas e afetivas?
Façamos o que for possível com as ferramentas que temos, mas não atendamos a convocações para uma continuidade que não faz sentido. Não cedamos ao fetiche comunicacional, ao passatempo informativo. Estejamos de fato presentes, assumindo o que ruiu, o que está ruindo e o que foi possível criar. Que estejamos comprometidos com a co-criação de um outro ethos educacional, sem rechaço nem submissão contemplativa, inconcluso, aberto, provocativo, convidativo. Mantenhamos, como Jacques Derrida[1] nos ensinou, a atitude atenta de um herdeiro, sendo ao mesmo tempo fiéis e infiéis ao que antecedeu a este momento histórico:
(…) esta mesma herança ordena, para salvar a vida (em seu tempo finito), que se reinterprete, critique, desloque, isto é, que se intervenha ativamente para que tenha lugar uma transformação digna desse nome: para que alguma coisa aconteça, um acontecimento, da história, do imprevisível “por vir” (p.13)
[1] DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã…diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.