Trabalho remoto na pandemia

20/08/2020 11:25

Trabalho remoto na pandemia

Carlos José Naujorks

Estamos em um daqueles tempos ambíguos em que, por vivenciarmos uma crise, esperamos alguma mudança. De preferência, para melhor. Não parece ser o caso do trabalho em sua relação com o sujeito. Ou, do sujeito ter no trabalho sua possibilidade de realização. A pandemia do Covid-19 colocou milhares de trabalhadores, de uma hora para outra, frente à necessidade do trabalho remoto. E aquilo que poderia ser uma promessa de maior diversificação e autonomia, tem se mostrado um tormento.

Somos 8,7 milhões de pessoas trabalhando de forma remota no Brasil. Dados do Ipea1 mostram que esse trabalho acontece, em termos proporcionais, majoritariamente no setor público. Nesse setor, em junho, 24,7% dos trabalhadores exerciam trabalho remoto, representando 3 milhões de pessoas. No setor privado, 8%, representando 5,7 milhões de pessoas. No setor público, o equivalente a 50,7% do total de ocupados podem, potencialmente, realizar o trabalho remoto, o que equivale a 6 milhões de trabalhadores. O distanciamento social possibilitado pelo trabalho remoto tem sido uma estratégia fundamental no combate à disseminação do Covid-19. Essa forma de trabalho deve, em grande parte, permanecer mesmo após a pandemia. No entanto, o trabalho remoto nos obrigou, repentinamente, a realizá-lo limitados às condições de infraestrutura que pessoalmente dispomos, a dividir o espaço do trabalho com a família e a vida doméstica e a organizá-lo em um tempo que deixa de ser apenas o tempo do trabalho, mas que é, também, o do cuidado de si, dos filhos e da casa. Essa informação assume maior relevância quando consideramos que o perfil do trabalhador em trabalho remoto é a mulher (branca, com nível superior), entre 30 a 39 anos2.

Além disso, é importante considerar a profunda desigualdade presente no trabalho remoto.  Antes da pandemia, o percentual de pessoas que trabalhavam em casa, no Brasil, era de 4,9% e abrangia majoritariamente trabalhadores autônomos (88,3% do total). Hoje, esse grupo representa menos de 15% do total, sendo a grande maioria composta por gerentes, pessoal administrativo, professores, ou seja, um grupo mais escolarizado e com maior acesso a infraestrutura digital3.

O acompanhamento a trabalhadores, ao longo deste tempo de pandemia, torna possível algumas considerações sobre as características do trabalho nessas condições. Longe de esgotar a diversidade dos aspectos envolvidos, faz-se, aqui, uma breve reflexão sobre seus impactos na relação entre o sujeito e o trabalho.

De forma imediata, pode-se elencar como presente nesse processo as dificuldades em relação ao acesso e ambientação às tecnologias para o trabalho remoto, à necessidade de novas configurações das rotinas de trabalho e, também, à relação estabelecida entre o trabalho e o ambiente doméstico e familiar. Este último aspecto aparece como definidor da relação entre o sujeito e o trabalho. Três aspectos colaboram para isso: o peso das tecnologias instantâneas de comunicação, a interpenetração entre as atividades de trabalho e atividades da vida privada e, por fim, a sobreposição entre distintos papéis sociais.

Muito do trabalho remoto tem se organizado por meio de tecnologias de comunicação que permitem uma resposta quase imediata pelo trabalhador. Isso acontece com o e-mail, as mensagens de texto e, principalmente, com o WhatsApp.  Corresponder a esse imediatismo aparece para o trabalhador, frequentemente, como uma demanda auto imposta. Além disso, as atividades síncronas, como as Webconferências, são realizadas de forma intensa, exigindo, principalmente de quem as coordena, atenção exclusiva, sem a diversidade e a riqueza das relações estabelecidas face-a-face. Isso se agrava quando os temas envolvidos são mais complexos e os elementos expressivos decorrentes da interação imediata são relevantes.

Observa-se, também, que o uso dessas tecnologias acontece intermeado pelas atividades da vida privada. Seu uso corriqueiro praticamente anula as distinções entre a vida doméstica e a vida do trabalho. Não que esses limites não fossem, antes, permeáveis. A distinção espaço-temporal dada pelos horários e ambientes de trabalho, característica da sociedade industrial, permitia uma separação relativamente nítida desses momentos. As tecnologias de comunicação foram aos poucos intensificando as interligações entre um espaço e outro. Agora, com o trabalho remoto, as Webconferências, chats, as mensagens eletrônicas, os contatos via WhatsApp, entre outros, interpenetram e convivem com a família e a vida doméstica. A fragmentação temporal do trabalho o expande, fazendo com que o trabalhador dele se ocupe em momentos que antes eram destinados à família e ao cuidado do cotidiano. Da mesma forma, esses espaços perdem qualidade, na medida em que são, também, divididos com as demandas decorrentes do trabalho. Situações de esgotamento psíquico surgidas nesse contexto começam a ganhar destaque4. Torna-se um desafio, para o trabalhador, estabelecer os limites entre essas esferas e, principalmente, encontrar no cotidiano doméstico os momentos para o trabalho e reorganizar as atividades familiares.

Também, diferente do que acontece agora no trabalho remoto, o ambiente do trabalho restringia, de certa forma, a atuação do sujeito ao desempenho do papel profissional. No ambiente doméstico, outros papeis ganham saliência, principalmente o cuidado dos filhos. Se, no ambiente tradicional de trabalho, havia uma uniformização decorrente das exigências do desempenho do papel, agora a diversidade das situações nas quais está envolvido o sujeito ganha destaque.  Assim, além da pessoa organizar sua dedicação ao trabalho, cabe pensar como serão consideradas suas particularidades.

Se há algo que estes tempos ambíguos podem permitir, é uma desnaturalização da forma como se olha a realidade. E esse pode ser o caso do trabalho. O atual contexto nos permite recolocar o trabalho em relação à nossa vida privada, evidenciado seu significado frente ao sentido que damos para nossa vida familiar, doméstica e intima. Aqui ganha importância os processos de comunicação voltados para o entendimento e a dimensão afetiva das relações profissionais. Se o que percebemos é que os meios tecnológicos que possibilitam o trabalho remoto viabilizam mais a dimensão burocrática das organizações, seus processos e resultados em detrimento do sujeito que trabalha, aparece como desafio pensarmos os espaços de ampliação da participação e de expressão desse sujeito trabalhador.

Uma perspectiva crítica frente ao trabalho e seus processos, que revele seus sentidos para o próprio sujeito e os processos naturalizados pelos quais ele é burocraticamente reproduzido, mais do que um chavão a ser indistintamente usado, torna-se um recurso político e epistêmico fundamental para enfrentar, justamente, aquilo que nos atormenta.

1 – Material disponível em:  https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/08/o-teletrabalho-no-setor-publico-e-privado-na-pandemia-potencial-versus-evolucao-e-desagregacao-do-efetivo/ Acesso em 14/08/2020.

2 – Material disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=36288&catid=131

Acesso em 14/08/2020.

3 – Rede de Pesquisa Solidária – Boletim No. 16. 17 de julho de 2020

4 – Alfageme, Ana (2020) O sonho do ‘home office’ vira pesadelo na pandemia.  Material disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-08-09/o-teletrabalho-nao-era-isto.html. Acesso em 14/08/2020.