Das lindezas que encontramos no caminho: notas sobre esperançar

22/02/2021 19:47

Raquel de Barros Pinto Miguel

Dando sequência aos textos produzidos para o LAPEE, eu estava responsável pela escrita da segunda quinzena do mês de dezembro. Exaustão era a palavra naquele momento. Um cansaço costumeiro de final de semestre, acrescido pelo fato de que não havíamos tido um semestre costumeiro, quiçá um ano costumeiro…

À exaustão já conhecida somavam-se as tensões e frustrações de uma primeira experiência vivendo a modalidade de ensino remoto: a frieza de câmeras desligadas, a aridez pela falta de olhares, de encontros… Não sei se posso falar em falta de afeto. Talvez tenha aprendido a me contentar com o mínimo: dois rostos visíveis em uma sala com 45 já traziam um certo alento.

Como se não bastasse, o cenário por traz do ensino remoto era desolador: uma pandemia desenfreada, distanciamento dos que amamos, medo, sofrimento, máscara, álcool em gel, mortes… Tudo isso sendo vivido em meio a um governo que minimiza e nega a gravidade da situação, levando adiante um projeto político-ideológico de deixar morrer vidas “perdíveis” (Butler, 2019).

Como uma otimista incorrigível, pensei que deixar a escrita deste texto para 2021 traria a oportunidade de uma escrita mais leve, mais otimista, com cara de recomeço. Mas 2021 nada mais tem sido do que um 2020 requentado. Aliás, um 2021 – que na verdade é um 2020.2 – que insiste em nos mostrar que a magia tão esperada no momento da passagem de um ano para outro é mera ilusão… Ou seria esperança?

Muitos temas difíceis rondaram minha cabeça antes de iniciar essa escrita. Sinceramente, não queria trazer o primeiro texto do ano com um tom tão pesado quanto o que já estamos vivendo. Quase um ano do início da pandemia, nossos corpos e mentes já estão cansados, a saudade daqueles e daquilo que amamos só aumenta, a luz no fim do túnel parece ficar cada vez mais distante quando, além do vírus, estamos imersos em uma necropolítica.

Mas, como já falei, o otimismo me acompanha e optei por seguir a direção de pequenas lindezas que, em meu caminho com professora, tornaram minha caminhada menos árida no ano que passou e neste que se inicia. Entre algumas experiências, escolho contar a que chamei de “Mosaico Paulo Freire”, que compreende uma das atividades na disciplina de Psicologia e Processos Educacionais (curso de Psicologia da UFSC), que teve como ponto de partida a leitura do livro “Pedagogia da autonomia”.

Usando uma ferramenta (Padlet) que permite a criação de quadros virtuais, sugeri que criássemos um quadro com informações sobre a vida e a obra de Paulo Freire. A ideia era construir um mosaico com aquilo que mais tocou cada um/a dos/as estudantes a partir de suas leituras e buscas a respeito do educador brasileiro.

O resultado foi lindo de se ver! Além de visualmente bonito, alegre e colorido, o mosaico reuniu, com muita sensibilidade, preciosas informações sobre Paulo Freire. Foi um momento de partilhar, trocar, aprender, ensinar, somar, construir, emocionar, afetar e deixar-se ser afetado/a. Uma empreitada coletiva que, ainda que virtual, estava impregnada de afeto, carinho, criatividade e descobertas.

A cada vez que, junto aos/às estudantes, revisito obras de Paulo Freire, sempre me salta aos olhos a atualidade do pensamento freiriano. Em alguns momentos chega a causar espanto! Em “Pedagogia da autonomia”, ao falar sobre raiva e raivosidade, ele diz: “A mim não me dá raiva mas pena quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam e destratam.” (Freire, 1996, p. 54)

É sabido dos ataques sofridos por Paulo Freire no período de ditadura militar brasileira. É sabido, também, dos ataques que seu pensamento vem sofrendo nos últimos anos em meio à onda conservadora que assola o país. A atualidade de suas ideias, bem como as “raivosidades” que elas despertam, fazem-me pensar nos movimentos cíclicos que compõem a vida. Ciclos que, ao mesmo tempo que permitem que ideias retrógradas voltem à superfície, nos fazem lembrar que recomeços são possíveis. Que a luta – mesmo em meio ao luto – é imprescindível.

E nessa luta, o educador que completaria 100 anos neste 2021, nos lembra de um ingrediente essencial: a esperança. Não se trata de uma esperança ingênua, quase mágica, que individualmente teria o poder de transformar a realidade. Segundo Freire: “Minha esperança é necessária mas não é suficiente. Ela só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos de herança crítica, como o peixe precisa da água despoluída.” (Freire, 1997, p. 5)

Paulo Freire nos fala de uma esperança atrelada à práxis, pois somente assim pode vir a ser uma realidade histórica. Como ele diz: é esperança do verbo esperançar. Esperançar é coletivo, é estar junto na luta contra opressões. É o que move a luta coletiva em prol de uma vida mais justa, ética, igualitária e comprometida.

Esperançar, no atual cenário, já é – por si só – um gesto de luta. Como diz o grande educador (em mais uma de suas frases mais atuais do que nunca): “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é, em si, um ato revolucionário.”

 

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra – quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S.A, 1997.