Uma incursão pela dimensão ético-política do pesquisar em psicologia

12/07/2021 09:33

Charles Augusto Christ [1]

Eu estou à espera, e não sei muito bem do quê. Talvez de que as aulas voltem presencialmente, eu possa entrar numa sala de aula com as janelas abertas e lá reencontrar meus amigos e colegas em plena sanidade mental. De que as aulas voltem e eu possa esbarrar ocasionalmente nas pessoas pelos corredores com um sorriso que não vai mais ficar escondido atrás de uma câmera fechada, e quem dera mesmo com um abraço! De que as aulas voltem e eu possa caminhar até a universidade sem sentir que as ruas estão infectadas com o escracho dos fascistas. De que as aulas voltem e eu possa seguir meus planos e dar continuidade aos projetos de pesquisa com os quais estou envolvido. De que as aulas voltem e as entrevistas da pesquisa possam ser feitas presencialmente, sentindo o calor humano, trocando afetos e conhecimentos, partilhando, somando, aprendendo e ensinando. De que as aulas voltem? De que possamos voltar?

Fazer uma pesquisa em modalidade remota é algo novo para mim, assim como a própria pandemia, mas tanto uma como a outra podem ser tomadas na sua dimensão positiva, ou seja, em relação ao que elas podem revelar sobre a realidade. Assim sendo, parece-me que a tragédia da pandemia de Covid-19 nos traz, entre sofrimentos e tristezas pelos mais de meio milhão de mortos, um alerta em relação ao que é realmente importante: a defesa da vida, a saúde, a segurança e educação dos povos, o desenvolvimento tecnológico colocado a serviço da humanidade e não contra ela. A pesquisa, por sua vez, tem uma implicação fundamental para que isso ocorra.

A pesquisa na área psicológica deve estar calcada em uma dimensão ético-política. Ela deve buscar construir mapas afetivos, onde as possibilidades de afetar e ser afetado aumentem: uma prática dos encontros, das composições, do estar junto na luta e em luta. A pesquisa acadêmica caracteriza-se pelo diálogo estabelecido com a realidade circundante e com a própria ciência psicológica. Nesse sentido, se há compromisso com a ciência e seu desenvolvimento, toda e qualquer pesquisa em psicologia responde também a implicações econômicas, sociais e políticas. No meu próprio pesquisar, aprendi que a pesquisa se constitui nessa complexa e intrincada rede de relações, na qual as regularidades são escassas e as diferenças predominam. Não há receita de bolo, nem script pré-definido, mas há sempre um comprometimento com uma visão de mundo que se pretende construir.

Para que as diferenças possam ser ouvidas no processo de pesquisar e, porque não, no processo de ser psicólogo, faz-se necessário fugir dos discursos normatizadores que engendram direções unívocas para a realidade e a existência concreta, o que possibilita “ir além do aparente e considerar tanto as condições subjetivas quanto as contextuais e históricas” no processo de constituição dos sujeitos (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 310). Assim, teremos a compreensão de um sujeito situado numa relação dialética com o social e com a história, tornando-o, concomitantemente, particular e universal.

Através do exercício da pesquisa, vislumbrei novas possibilidades para meu fazer enquanto psicólogo. Aprendi que uma das características fundamentais para a humanização da psicologia é superar o existente e se lançar em direção ao devir, fazendo emergir novas relações que não mais estejam atreladas ao utilitarismo e à impessoalidade impostos pelo sistema capitalista.

Nesse sentido, tanto para a prática de investigação científica quanto para o fazer profissional do psicólogo, coloca-se a superação desse paradigma teórico-epistemológico: avançar do empírico para o interpretativo (AGUIAR; OZELLA, 2013). É preciso (re)aprender a olhar, a admirar e, principalmente, a perguntar, a questionar e a problematizar. A pesquisa, por isso, é criação. Ela é capaz de (re)modelar sujeitos, conhecimentos e a própria realidade. Nesse período de formação, entre os PPOs [Prática e Pesquisa Orientadas] e o PIBIC [Programa Institucional de Iniciação Científica e Tecnológica], eu me modifiquei muito, assim como as pessoas com as quais trabalhei, no processo de produção de conhecimentos, também devem ter se modificado. Como atividade criadora, a pesquisa nos faz repensar nosso lugar no mundo para, então, transformá-lo. Produz novos sentidos a partir de relações entre sujeitos, onde tais sujeitos, entendidos à luz do enfoque histórico-cultural em psicologia, são mutuamente constitutivos.

Tento demonstrar aqui o quanto a pesquisa é alicerce fundamental para a prática profissional da psicologia, uma vez que levantar questões, coletar dados, preparar intervenções, fazer análises, etc. são conjuntos de atividades que constroem um verdadeiro profissional. Tais atividades engendram um movimento, o qual coloca em relação a teoria, a prática e a realidade concreta. Assim, os psicólogos, quando formados dentro desse movimento, são capazes de recriá-lo e reorganizá-lo de acordo com as reais necessidades, ao invés de se conformar com as teorias já elaboradas.

Por fim, posso afirmar que não há prática profissional sem pesquisa. Esses fazeres se encontram um no corpo do outro. O pesquisar não é uma forma de ser ou de atuar do psicólogo, mas sim constitui-se como uma característica inerente ao exercício profissional. É necessário que, em sua formação contínua, o psicólogo se perceba e se assuma enquanto psicólogo porque antes é pesquisador.

Embora à distância, a pesquisa me gerou elucubrações que permitiram que eu tivesse acesso a uma práxis profissional. Freire (1979) aponta que o diálogo com a realidade só ocorre na práxis. Assim, tal diálogo, fomentado por uma formação pautada em atividades práticas e de pesquisa, pode vir a ser “o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se” (FREIRE, 1979, p. 25).

Continuarei à espera, sem saber muito bem do quê. Talvez a prática formadora do exercício de pesquisa, a qual possui natureza eminentemente ética, coloque-me agora em movimento no intuito de intervir sobre o que é possível e tentar fazer com que as coisas melhorem. Passar da passividade à atividade através de um saber-fazer ético-político que instigue a emancipação humana, e que permita que, dentro de pouco tempo, possamos nos abraçar livremente mais uma vez!

[1] Charles Augusto Christi é graduando do curso de psicologia e bolsista de PIBIC, atuando na pesquisa: “O ensino de psicologia nas licenciaturas: formação docente e práxis pedagógica”.

 

Referências

AGUIAR, Wanda Maria Junqueira de; OZELLA, Sergio. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 94, n. 236, p. 299-322, 2013.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.