Desenvolvimento do papel de estudante universitário em tempos de pandemia e ensino remoto emergencial na UFSC
Beatriz Daltoé Bristot Borges e Luísa Costa Miguel [1]
Com base em uma psicologia escolar e educacional de base fenomenológica e materialista histórica, temos desenvolvido projetos de intervenção em grupos com estudantes universitários da UFSC. A perspectiva que anima nossas ações preconiza que o desenvolvimento do papel de estudante universitário não depende unicamente do sujeito e de suas escolhas, mas da articulação entre pessoas, objetivos e visões de mundo em uma dada materialidade espaço-temporal.
As relações interpessoais, com objetos, conhecimentos e saberes, as experiências proporcionadas pelas vivências possíveis no espaço universitário, como atividades políticas, culturais, físicas e de lazer, configuram-se enquanto oportunidades de aprendizagem que mediam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos jovens e adultos universitários. Muitos deles, recém saídos da escola e possivelmente da casa dos pais, além de integrar-se ao ambiente acadêmico, precisam aprender novas tarefas e desenvolver habilidades coerentes com este novo ciclo de desenvolvimento humano. São muitas as expectativas sobre o futuro e o que será vivenciado, as quais influenciam, inclusive, o grau de satisfação com a vivência do papel de estudante do ensino superior.
Do mesmo modo, entendemos que fatores institucionais, práticas pedagógicas, a organização curricular, o material de apoio, a competência dos docentes e sua preparação científica e pedagógica têm fundamental importância na trajetória acadêmica. Coulon (2017) nos chama a atenção para o cuidado de não negligenciar o contexto material no qual se desenvolve este papel, pois seu sucesso não depende apenas de um humanismo simpático. O ser e estar universitário demandam uma adaptação a própria cultura e dinâmica deste ambiente, cujo processo de filiação, de acordo com este mesmo autor envolve
“[…] conhecer detalhadamente todas as sutilezas das relações sociais, é compartilhar as evidências do mundo em que se vive, é dominar e compartilhar de maneira ativa a linguagem natural e comum do grupo em que se vive. Não se trata apenas do idioma que se fala, ainda que, evidentemente, ele seja essencial: todo conhecimento da linguagem social é necessário a esse membro do grupo.”
Devido à necessidade de mantermos distanciamento social para conter o avanço das contaminações, hospitalizações e morte por COVID-19, os três últimos semestres têm sido desenvolvidos sem contato com o contexto material da formação. As aulas continuaram acontecendo, sem encontros presenciais nas salas, corredores, praças, biblioteca, RU. As “fases do curso” foram sendo vencidas, e os calouros de 2020.2 e de 2021 até agora não frequentaram o campus e não conheceram colegas, professores ou técnicos cuja mediação sustentou o desenvolvimento deste papel.
Nos encontros com grupos de estudantes universitários que coordenamos, tem sido possível observar que esta realidade vem afetando de maneira significativa a capacidade e a motivação destes em estabelecer relações entre os conteúdos trabalhados nas aulas e a identidade profissional, por exemplo. É comum que participantes dos grupos façam referência ao sentimento de insuficiência, o qual se refere a uma avaliação insuficiente do que produzem, se comparada ao que entendem que precisariam aprender para desenvolver seu futuro papel profissional. Na mesma direção, têm nos apresentado angústias geradas pela impossibilidade da convivência diária com seus pares, tornando-os conscientes da importância das interações sociais presenciais para a satisfação e motivação no desempenho deste papel.
A relação com o próprio corpo parece diferente, nos dizem. De tanto ficarem sentados, invisíveis por trás de câmeras desligadas, como “orelhas coladas a um cérebro gigante”, sentem-se como que desligados de uma gestualidade própria, da possibilidade de rabiscar com traços seus, ideias disponibilizadas em diferentes fóruns, sobre as quais muitas vezes professores têm a expectativa de que sejam comentadas por colegas, na esperança, talvez, de que assim haja trocas entre estudantes.
O exercício de mediar as vivências grupais a partir do método sociodramático, desenvolvido originalmente por Jacob Levy Moreno, tem nos proporcionado formas de encontro que diminuem o mal estar provocado pelo distanciamento e pelo cansaço das telas, mas exercer esta atividade acadêmica que marca a finalização do nosso próprio processo formativo em Psicologia na modalidade remota, também nos tem feito refletir muito acerca do “antes” e do “depois” da pandemia no desenvolvimento do nosso próprio papel. O fato de compartilharmos a mesma situação existencial tem possibilitado uma vinculação autêntica e espontânea com o grupo, ao mesmo tempo que exige um esforço reflexivo e analítico maior.
O fato de compartilharmos uma afiliação teórica que nos possibilita desenvolver este papel alinhando ação e reflexão na busca por significações comuns têm nos mostrado a importância de tratar de temas emergentes em contextos educacionais e de escolarização numa perspectiva não psicologizante, situacional e histórica. Faz-se necessário no atual momento, atualizar expectativas, vinculá-las a projetos de futuro que incluam e superem formas de compreensão de si baseadas em abstrações idealizadoras e racionalizações descontextualizadas.
Constituir grupos nos quais os membros vinculem-se formando comunidades de aprendizagem para o desenvolvimento de papéis que atendam de forma crítica e consciente às mudanças exigidas por situações emergenciais e de crise, nos parece ser uma alternativa metodológica, ética e estética interessante e inovadora no campo da psicologia escolar e educacional.
Referências
Bisinoto, C., & Marinho-Araújo, C. (2014). Sucesso acadêmico na educação superior: Contribuições da psicologia escolar. Revista E-Psi, 4(1), 28-46.
Coulon, A. (2017). O ofício de estudante: a entrada na vida universitária. Educação e Pesquisa, 43(4), 1239-1250. https://dx.doi.org/10.1590/s1517-9702201710167954
Moreno, J. L. (1975). Psicodrama (2a edição). São Paulo: Editora Cultrix
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[1] Estagiárias na ênfase Psicologia Escolar e Educacional do curso de Graduação em Psicologia da UFSC, sob supervisão acadêmica da Profª Drª Denise Cord e da Psicóloga Educacional atuante no campus da UFSC em Araranguá, Iclícia Viana.