Respirar em tempos de pandemia: afetos e relações de ensinar e aprender
Neiva de Assis
Acompanhei atenta meus colegas que anteriormente escreveram para o “Leitura da Quinzena” e, analisava sob qual ângulo eu abordaria a relação educação e pandemia por COVID-19. Afinal, a situação que vivemos exige ainda esforço de compreensão e reconheço em mim, muita dificuldade em nomear que momento é esse que estamos vivendo.
Curioso que a pandemia prejudica justamente um aspecto elementar da vida humana: nossa possibilidade de respirar… de encher os pulmões e alimentar o corpo – processo que ocorre na maioria das vezes alheio à nossa consciência.
Desde março estamos imersos em um caos de atividades de reprogramação do plano de ensino, ensino remoto, aproximação forçada com as tecnologias, encontros síncronos, crianças que vão à escola buscar materiais impressos, professoras que trabalham madrugada à dentro editando vídeos e postando tarefas, famílias de estudantes que agora se veem na tarefa de alfabetizar os pequenos e reaprender o conteúdo escolar. Basta dar uma olhadinha na página “A sociedade cala, a escola fala [1]” para constatar a condição pedagógica que estamos vivendo.
Como e, em que condições retomaremos as atividades educativas curriculares? Como estarão professores e professoras, estudantes, brasileiros e brasileiras que historicamente já viviam a exclusão e a desigualdade social na experiência de ensinar e aprender? Para qual mundo estamos caminhando? Dia após dia a cena torna-se ainda mais desoladora, seja pelo número de contagiados e mortos, seja pelo modo como Estado e sociedade enfrentam (ou não) esse desastre.
Respiramos cansados…
Quando as atividades pedagógicas foram retomadas por meio do ensino remoto na universidade, questionava-me intrigada, como poderia provocar experiências significativas de aprendizagem aos estudantes na graduação. Considero que a aula é um acontecimento [2], momento vivo de valorização do saber, evento único e e, como tal precisa de corpos presentes em interação. Como produzir esse evento via computador?
Propus aos estudantes que construíssemos um inventário de memórias da pandemia, do isolamento social. Desejei que montássemos um espaço de memória virtual com arquivos de pensamentos, sentimentos e ações deste momento. Evidente, que era também, um modo de, minimamente criar uma aproximação entre professora e estudantes, de nos reconhecermos como grupo de trabalho e para acolher a temática que não se esquece:
estamos vivendo uma pandemia!
Imaginamos um baú de sobrevivência a partir da arte e de atividades criadoras. Estudantes participaram das mais diversas formas contando o que andaram inventando nesse período angustiante. E inventaram tanto! Poesia, música, textos, fotos, relatos, imagens que revelavam processos criativos e imaginativos. Dentre eles só pra citar um exemplo, um estudante criou uma flauta a partir de cano de PVC. Uma flauta de cano PVC! Podem tanto! – eu pensava. E submetemos, nós professores, dia após dia esses sujeitos que criam às burocracias e institucionalidades educacionais e, deixamos de fora outros saberes, modos outros de conhecer e experimentar o mundo.
Vigotski, pesquisador russo, escreveu no livro Psicologia pedagógica [3] sobre sua defesa de uma escola que exista para fora dos muros. Tenho muito apreço por essa ideia e parece-me ainda mais relevante para pensar a escola pós pandemia. Tem tanta experiência potente acontecendo fora da lógica currículo-carteira-quadro de giz-nota … ou, em tempos de isolamento melhor seria: computador-videoconferência-fórum de discussão.
Tem tanta gente criando arte e recriando a vida com aquilo que justamente dela escapa… E se o que estamos vivendo pudesse fazer com que valorizássemos a criação que ocorre na escola e na vida?
Talvez poderíamos respirar melhor.
E se a escola fosse possibilidade de experimentação do corpo em movimento, em expansão e que a gente pudesse dançar e cantar nos corredores? E se as famílias pudessem aproveitar o momento de isolamento social para reencontrar seus filhos em um outro tempo, menos acelerado e mais inventivo… Algo próximo ao que disse o educador italiano Francesco Tonuci [4]: “Não percamos esse tempo precioso dando deveres. Aproveitemos para pensar se outra escola é possível.”
No entanto, na pandemia tem gente vendo na escola uma boa fonte de lucro, lançando ações na bolsa de valores – e, aparecem desde propostas educativas encartilhadas, e técnicas encaixotadas para lidar com o aprender e com a dor do isolamento. E pergunto: o que faz de uma escola uma escola, afinal? O ensino remoto na pandemia, que seria uma estratégia excepcional durante o isolamento, pode aligeirar a implementação da EAD, substituindo cursos presenciais com finalidades outras, pode favorecer a precarização da educação, do trabalho docente, da formação em psicologia, etc. Não consigo enxergar como sobreviver a pandemia e a necropolítica que se instala de forma oportunista, sem que seja com os afetos produzidos nos encontros coletivos.
Minha recente e feliz aproximação com a temática dos povos tradicionais – primeiro no contato com uma terra Guarani em minha tese de doutorado e agora com um quilombo urbano em Florianópolis no trabalho com bolsistas de pesquisa e extensão na UFSC – fortalece a importância de restituir à nossa experiência, modos coletivos de estar no mundo. Tenho encontrado entre as rachaduras das calçadas na cidade e no muro da escola, experiências que valorizam os significados coletivos do viver e que produzem vida, capaz de confrontar momentos como o que estamos vivendo.
Ailton Krenak [5] – mas também Casé Angatu Xukuru Tupinambá [6]; Alberto Tupã Ra’y [7], Guarani e, outros indígenas de diferentes etnias – diz que os indígenas não precisam resgatar o coletivo, pois a natureza indígena é coletiva. Há nessa afirmação tanta força de vida, tal qual o capim que brota em meio a rachadura do cimento. Poderíamos aprender com as diferentes etnias, sobre o viver coletivo e sobre como educar nossas crianças: “As crianças indígenas não são educadas, mas orientadas” (…) Aprendem a partilhar o lugar onde vivem e o que têm para comer. Têm o exemplo de uma vida onde o indivíduo conta menos do que o coletivo. Este é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. O que as nossas crianças aprendem desde cedo é a pôr o coração no ritmo da terra” [8].
Como os indígenas, tem muita gente que vive por aí e aqui, invisível entre as grandes cidades e as ruralidades que sabem muito bem como respirar, como brotar da terra. Vejo com esses anônimos, com esses sujeitos ordinários – como dizia Michael de Certau [9] ou ainda, sujeitos “lentos” – como diria Milton Santos [10] – um caminho possível, pautado na afirmação e alargamento da vida.
Vi outro dia uma charge interessante da Laerte [11]: no primeiro desenho está ela, apoiada na pia do banheiro, convoca o leitor com os olhos e acima o seguinte texto: “Quando eu olho no espelho”. E em seguida, um novo quadrinho em novo ângulo mostrando o espelho e suas mãos que fecham a torneira. No reflexo no espelho, várias e variadas pessoas aparecem, com os dizeres “Eu vejo todo mundo”. Ou seja, ao olhar-me no espelho, vejo um mundo. Pus-me então a pensar sobre o que e quem nos compõe – problemática cara à psicologia. Do que somos feitos? Nos dias em que estou triste nesse isolamento social revisito minha história, reencontro os meus, que vieram antes de mim e que não estão mais por aqui, me reconheço nas minhas experiências vividas. Tenho um apego por miudezas e quinquilharias; guardo bilhetes, cartas, fotos, mapas, lembranças. Por ali permaneço por algum tempo, respiro e assim, me reconecto com a vida, com o meu trajeto e com tantos outros – de outros tantos que permitiram que hoje eu possa estar aqui escrevendo esse texto. Seja no meu baú de histórias particulares, seja no inventário de memórias construído com os estudantes nos cursos de Psicologia e Licenciatura, localizo a importância de parar, respirar, pensar, sentir, produzir outras memórias, experiências sensíveis de contato com o passado e assim, poder lançar, quem sabe, adubo em uma terra que se possa projetar, criando um futuro em que se respire tranquilamente, em que a vida não seja cansada.
Tal como, Eduardo Galeano [12] reivindico o direito ao delírio, de imaginar outra sociedade, outra escola, de criar outra experiência de vida, de aprender e de ensinar e, é com ele, que finalizo esse texto:
Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja. As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal se delirarmos por um momentinho?
[1] A sociedade cala, a escola fala. https://www.facebook.com/aescolafala/
[2] Geraldi, Joao Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João Editores, 2015.
[3] Vigostki, Lev. Psicologia pedagógica. Tradução do russo e introdução de Paulo Bezerra. (Coleção textos de Psicologia). 3a. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
[4] Tonucci. Francesco. Não percamos esse tempo precioso com lição de casa. El País. 12 de abril de 2020. https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-12/francesco-tonucci-nao-percamos-esse-tempo-precioso-dando-deveres.html?utm_source=Facebook&ssm=FB_BR_CM#Echobox=1594173985
[5] Ailton Krenak, Vozes da Floresta – A aliança dos Povos da Floresta de Chico Mendes a nossos dias. Direção Thiago B. Mendonça. Abril de 2020. https://www.youtube.com/watch?v=KRTJIh1os4w&t=125s
[6] Machado, Ricardo. Entrevista especial com Angatu Xukuru Tupinambá. Instituto Humanitas UNISINOS, janeiro de 2019. http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/582140-nos-nao-somos-donos-da-terra-nos-somos-a-terra-entrevista-especial-com-case-angatu-xukuru-tupinamba
[7] Tupã Ra’y, Alberto. Curso de Guarani. Museu do Índio UFU.2020. https://www.youtube.com/watch?v=eAfICmlKntQ&feature=youtu.be
[8] Krenak, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras. 2020.
[9] CERTEAU, Michel: A invenção do cotidiano: volume 2. Morar, Cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2013.
[10] SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
[11] Coutinho, Laerte. https://www.instagram.com/p/CHqnCqSsVdc
[12] Galeano, Eduardo. El derecho al delírio. https://www.youtube.com/watch?v=5wD9mxn45nc
(Agradeço Denise Cord, parceira do LAPEE; João Eduardo Martins, estudante de Psicologia e Evandro de Assis, meu irmão pela leitura e do texto)