Como construir uma escola que acolha a todas as pessoas?
Marivete Gesser
A escola, pelo menos no Brasil, nunca foi para todos. Na educação básica, esta instituição tem excluído sistematicamente estudantes que de alguma forma não se enquadram no ideal de sujeito normativo (Patto, 2015). A aprovação da nova Política Nacional de Educação Especial em 30 de setembro de 2020 pelo governo federal Brasileiro, a qual permite a segregação de estudantes com deficiência em instituições de ensino especiais, reitera a primeira afirmação do texto. Destaca-se que esse ideal de estudante a qual a escola está preparada para acolher é o de alguém que seja física e mentalmente capaz para se adaptar aos espaços e às práticas pedagógicas que pouco se modificaram no que se refere ao acesso ao conhecimento e ao acolhimento das diferenças. Por meio de suas práticas, a escola não exclui somente com base na capacidade de aprender, mas também pela intersecção de processos discriminatórios tais como o racismo, o sexismo, a LGBTIfobia, o capacitismo e o classismo, que produzem diferentes enquadramentos dos estudantes que estão lá inseridos, vulnerabilizando uns e privilegiando outros.
No Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC (NED), que venho coordenando desde 2017, temos pensado muito sobre a relação desses processos históricos de exclusão reproduzidos no interior da escola e nas relações destes com o capacitismo. Além disso, temos produzido pesquisas focadas na construção de práticas anticapacitistas. Mas talvez o leitor deva estar se perguntando: O que é o capacitismo?
O capacitismo é um conceito trazido para o Brasil pela antropóloga Anahi Guedes de Mello com um intuito de nomear processos discriminatórios vivenciados por pessoas com deficiência. Fiona Capmbell (2009) destaca que esse processo é baseado no modelo biomédico e opera como um sistema que hierarquiza e oprime corpos com base nas capacidades. Embora as pessoas com deficiência são as que mais sofrem os efeitos do capacitismo, todas as pessoas que não se enquadram dentro do que é esperado em termos de capacidade, sejam estas mulheres, pessoas LGBTI, indígenas e negras, por desviarem do ideal universal de ser humano – que tem como principais parâmetros ser homem, branco, do norte global, cis, heterossexual e totalmente independente – são patologizadas e entendidas como menos capazes.
Com base no diálogo com autores como Fiona Kumari Campbell, Robert McRuel, Gregor Wolbring e Sunaura Taylor, em texto produzido em coautoria com Pamela Block e Anahi Guedes de Mello, partimos do pressuposto de que o capacitismo é estrutural e estruturante da sociedade. Ou seja, este condiciona, atravessa e constitui sujeitos, organizações e instituições, produzindo formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é reproduzido por um ideal de capacidade normativa que gera como efeito a compreensão de que corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, idosas, LGBTI e com deficiência são naturalmente menos capazes. Consideramos também que as capacidades normativas que sustentam o capacitismo são produzidas com base nos discursos biomédicos que, sustentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a reproduzir a capacidade para se afastar do que é considerado abjeção (corpos abjetos são aqueles que, por divergirem do que considerado típico da espécie, busca-se distanciar a todo custo). Ademais, nossos estudos apontam a estreita relação entre o capacitismo e sistema capitalista, uma vez que este é beneficiado com a busca constante da ampliação das capacidades humanas para o incremento da produtividade.
Os estudos que temos desenvolvido no campo da educação têm mostrado que estudantes que são atravessados pela intersecção entre sistemas opressivos como o capacitismo, sexismo, racismo, LGBTIfobia, colonialismo e classismo tendem a apresentar dificuldades de se enquadrar nas práticas educativas desenvolvidas na escola, as quais tendem a ser voltadas à adaptação dos corpos para a reprodução do sistema social vigente. Mas como subverter este modo como a escola tem estruturado suas práticas? Se a escola é uma instituição constituída por sujeitos que são atravessados e constituídos pelo capacitismo – que é estrutural e estruturante da sociedade, como podemos produzir uma escola anticapacitista?
Embora eu considere que este é um imenso desafio, acredito que uma estratégia importante é a de transformar os currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação. Temos realizado estudos interessantes no NED, tanto relacionados à contribuição dos estágios profissionalizantes em Psicologia Escolar e Educacional, como também nas contribuições da oferta de uma disciplina baseada no campo dos estudos da deficiência para a produção de fissuras no capacitismo. Nossos estudos apontam que a oferta de disciplinas voltadas à compreensão crítica de outros sistemas opressivos como o racismo, sexismo, LGBTIfobia e classismo, bem como no campo das políticas públicas e dos direitos humanos, também oferecem importantes subsídios teórico-metodológicos para darmos conta deste desafio.
Outra estratégia que temos voltado a nossa atenção se refere a produção de espaços e práticas educativas pautadas na perspectiva do acesso coletivo. O campo dos estudos da deficiência de matriz feminista – o qual tem como princípio a construção de espaços sem barreiras para corporeidades diversas – pode contribuir muito para que todos os estudantes sejam incluídos na escola. Elementos como à crítica ao ideal de independência e a incorporação da dependência e da interdependência como inerentes à condição humana desafiam a escola a acolher pessoas com diferentes características corporais e condições funcionais. A perspectiva interseccional do feminismo negro – que foi integrada aos Estudos da Deficiência de matriz feminista – também muito contribui para entender a complexidade das relações sociais produzidas na escola, muitas vezes opressoras de corporeidades que não reproduzem o ideal de sujeito moderno. A construção de pesquisas e práticas profissionais com as pessoas com deficiência, em consonância com o Lema do Movimento Político das Pessoas com Deficiência “Nada sobre nós, sem nós” também tem se mostrado muito importante para a construção de práticas anticapacitistas na escola.
Aprofundar os princípios e contribuições dos estudos da deficiência de matriz feminista com foco na perspectiva do acesso coletivo renderia outro texto. Para quem tiver interesse em conhecer mais sobre o campo dos estudos da deficiência, coloco abaixo o link de acesso a uma contracartilha de acessibilidade, construída por ativistas acadêmicos do campo dos estudos da deficiência aqui do Brasil (1). E sobre os estudos da Deficiência, para iniciantes, sugiro o Livro de Débora Diniz “O que é deficiência” (2) e o caderno temático “Psicologia e Pessoas com Deficiência” (3) elaborado pelo nono plenário do CRP-12 em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC. Também indico o capítulo de livro intitulado “Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola”, que será disponibilizado gratuitamente ainda neste ano (4). Por fim, indico os textos de “Politizar a deficiência Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag #ÉCapacitismoQuando no Facebook” (5) de Anahi Guedes de Mello e “PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual” de Marcia Moraes (6).
* Agradeço a leitura prévia e cuidadosa de Maria Fernanda Diogo e Juliana Silva Lopes
Indicações de Materiais
(1) Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia. Contracartilha de acessibilidade: reconfigurando o corpo e a sociedade. ABA; ANPOCS; UERJ; ANIS; CONATUS; NACI: Brasília; São Paulo; Rio de Janeiro,
- 14p. Link de acesso.
(2) Diniz, Débora (2007). O que é deficiência? São Paulo Brasiliense.
(3) Caderno Temático do Nono Plenário do CRP-12 “Psicologia e pessoas com deficiência”. Tribo da Ilha: Florianópolis. Link de Acesso.
(4) Gesser, Marivete (2020). Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola. Em: Leandro Castro Oltramari, Ligia Rocha Cavalcante Feitosa, Marivete Gesser (Orgs.). Psicologia escolar e educacional: processos educacionais e debates contemporâneos. (pp. 93-113) Florianópolis: Edições do Bosque UFSC/CFH, 2020. Link de Acesso.
(5) Mello, Anahi G. (2919). Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag #ÉCapacitismoQuando no Facebook. In: Prata, Nair; Pessoa, Sônia C. (Org.). Nair Prata e Sônia Caldas Pessoa, Desigualdades, gêneros e comunicação. (pp. 125-142). São Paulo: Intercom. Link de Acesso.
(6) Moraes, Marcia (2010). PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Marcia Moraes e Virginia Kastrup (Orgs.). Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. (pp. 26-51). Rio de Janeiro: Nau.
Referências
Campbell, Fiona Kumari. (2009). Contours of Ableism – The production of disability and abledness. Palgrave Macmillan, UK, 2009.
Gesser, Marivete, Block, Pamela, Mello, Anahi Guedes (no prelo). Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. Em: Gesser, M. Bock, Geisa L. K., Lopes, P. H. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV.
Patto, Maria Helena de Souza (2015). Produção do Fracasso Escolar: Histórias de Submissão e Rebeldia. Intermeios; 4ª edição.
FLUP – Festa Literária das Periferias
Esta semana, temos uma dica IMPERDÍVEL: Achille Mbembe será entrevistado por Iman Rappetti no Youtube da FLUP.
A FLUP é uma festa literária internacional cuja principal característica é acontecer em territórios tradicionalmente excluídos dos programas literários. Neste ano, com a pandemia, o evento migrou para o Youtube.
O tema debatido por Mbembe será “O mundo de joelhos”.
Quando? Dia 06 de novembro às 20h. Onde? https://www.youtube.com/user/FluppRJ
Agende-se!
Normal não é legal
Ao longo dos últimos meses, como psicóloga, tenho sido requisitada a falar sobre saúde mental e, mais especificamente, sobre as influências da pandemia em nossa saúde mental. E, como psicóloga escolar, tenho sido provocada a pensar sobre a condição vivenciada por estudantes e professores que viram sua relação, e seus modos de ser-estar nessa relação, modificarem-se significativamente, num processo de ensino-aprendizagem mediado, também, pelas telas de computadores e smartphones, e pela qualidade (ou ausência dela) da velocidade da internet.
Pesquisas recentes[2] têm demonstrado um aumento significativo, nos últimos meses, dos índices referidos de ansiedade e preocupação, e especialistas tem dado o alerta sobre a importância da atenção à saúde mental durante e após a pandemia da Covid-19. Mas, o que significa estar mentalmente saudável? E, mais especificamente, o que significa estar mentalmente saudável num momento de dificuldades, perdas e luto?
Com base nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, podemos compreender que o que se entende por saúde mental é resultado da ação simultânea de processos intrapsíquicos e sociais[3]. Desse modo, a partir de uma interpretação livre e de forma muito resumida, podemos entender saúde mental como a capacidade de lidar com nossos afetos e de elaborá-los, de acordo com o contexto histórico.
Portanto, estar alegre e despreocupada(o) num momento de perdas, medo, insegurança, tristezas e luto, é um indicativo tanto ou mais preocupante de necessidade de atenção à saúde mental do que se apresentar ansiosa(o) ou estressada(o). Esse esclarecimento se faz necessário porque, nos últimos tempos, tem sido difundida a noção de que saúde mental é o mesmo que felicidade. Nada mais equivocado!
Se saúde mental está relacionada à capacidade de lidar com nossos afetos de forma coerente com o contexto em que vivemos, como nos manter saudáveis em uma realidade adoecedora?
Nesse sentido, não podemos perder de vista que essa é uma problemática social e não individual. Não estamos falando de indivíduos acometidos por transtornos mentais como depressão, transtornos de ansiedade – para falar apenas dos mais frequentes – em razão de meros desequilíbrios químicos no cérebro. Estamos falando de um sofrimento com base em questões políticas, econômicas e culturais.
A chave central de entendimento aqui é a noção de constituição humana, a partir de relações sociais que se estabelecem em condições concretas de existência, mediadas pela cultura; portanto, para nós, seres humanos, não é possível existir fora da coletividade, da materialidade da (re)produção da vida e da história[4].
Nesses meses de pandemia, vimos nossas rotinas serem alteradas de forma intensa e muito abrupta. De um dia para o outro, nossas atividades habituais se tornaram possibilidade de risco iminente à vida: ir ao trabalho, à escola, encontrar os amigos, dar um abraço – a recomendação é de que não façamos nada disso, ou melhor, de que façamos à distância (e os abraços foram substituídos por emojis e gifs). Expressões como “home office”, “videoconferência”, “ensino remoto”, já presentes em nossos vocabulários, tornaram-se palavras de ordem que passaram a regular nossas rotinas e nossos relacionamentos.
Em meio a tantos desafios e incertezas, começamos a querer de volta a segurança proporcionada pelo conhecido, pelo habitual. Passamos a desejar que “as coisas voltem ao normal”. Assim, uma nova expressão surgiu e tomou força: “novo normal”, entendido como sinônimo de retomar a vida em sua cotidianidade; e muito esforço tem sido empreendido, por muitos de nós, nessa tentativa.
“Normal”, apesar de atributo constitutivo de nossas identidades – a própria psicologia enquanto ciência se funda na determinação do normal/anormal[5] – é também sinônimo de algo comum, ordinário; e num mundo que promete [“a quem faz por merecer”] a condição de “ser especial”, normal não é dos adjetivos mais cobiçados. Assim, o marketing, nos últimos meses, passou a nos seduzir com promessas de “novo extraordinário”; “novo espetacular”.
No entanto, a “novidade extraordinária” prometida se trata da aquisição de um novo produto; de uma nova mercadoria a ser consumida para que a roda do mercado continue girando e moendo a vida enquanto gira[6]… Quero propor, a partir daqui, algumas questões problematizadoras:
O que pode haver de normal num mundo no qual, no intervalo de dez meses, um milhão de pessoas morreram[7] de uma doença altamente contagiosa, mas potencialmente evitável?
O que pode haver de normal num mundo em que muitos de nós se veem obrigados à escolha impossível entre passar fome ou pegar (e transmitir) Covid-19?
O que pode haver de normal num mundo no qual a existência humana é meio para fins de acumulação financeira?
Ao invés de nos esforçarmos para fazer com que a excepcionalidade trágica desse momento vivenciado com a pandemia se torne habitual – “novo normal” – precisamos ter a coragem para encarar as desigualdades que a Covid-19 escancara, as ignorâncias, o egoísmo, a mesquinharia; nossa pequenez, enfim.
Nossa saúde mental depende da qualidade das relações que estabelecemos e da saúde do planeta que habitamos; dessa forma, soluções individuais são passageiras e ilusórias. É preciso deixar de banalizar o que não pode ser banalizado e compreender, de uma vez por todas, que para os seres humanos: “eu” é sinônimo de “nós”; e o que se entende por individual é gestado na coletividade.
Ao invés de nos dedicarmos a tentativas incessantes de normalizar a existência humana, capturando-a em fragmentos isolados e estáticos; passemos a nos dedicar a celebrar a vida, a nos encantar com a beleza da sua diversidade e de seus infindáveis movimentos. Há tempos tenho um bordão: “normal não é legal!”.
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[1] Agradeço a leitura prévia cuidadosa de Maria Fernanda Diogo.
[2] Zorzetto, Ricardo (2020). Tempos de incerteza: mudanças na rotina ocasionadas pela COVID 19 podem aumentar casos de sofrimento emocional e transtornos mentais. Revista Pesquisa FAPESP. São Paulo, ano 21. n. 294. p. 18-23, agosto, 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/tempos-de-incerteza/
[3] Rabelo, Fabiano C.; Dias, Reginaldo R.; Carvalho, Gustavo de O.; Martins, Karla P. H. (2018). Esquizofrenia, Clínica e Saúde Mental na Psicologia Sócio-Histórica e na Psicanálise. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 229-247. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652018000200003
[4] Zanella, Andrea (2020). Fundamentos Epistemológicos da Psicologia Histórico-cultural: dialogando com a “Ideologia Alemã”. In: Zanella, Andrea. Psicologia histórico-cultural em foco: aproximações a alguns de seus fundamentos e conceitos. Florianópolis: Edições do Bosque/UFSC. p. 19-27. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212717
[5] Para uma leitura crítica da constituição da psicologia enquanto ciência recomenda-se a leitura de: Patto, Maria Helena S. (2015). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Intermeios.
[6] Para o aprofundamento da discussão acerca dos processos de subjetivação nas tramas do neoliberalismo, consultar: Foucault, Michel (2008). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.
[7] BBC News (2020). Um milhão de mortos por Covid-19: gráficos mostram onde o coronavírus se espalha e mata mais. 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54339632
Vídeo Institucional do LAPEE
Apresentamos o vídeo institucional do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (Lapee), produzido pela estudante de Psicologia da UFSC Juliana Alves. Ele expõe as principais ações e projetos do Lapee, com ênfase nos projetos de extensão, bem como nossos parceiros habituais. Ficou curioso com algum projeto? Entre em contato conosco! #LAPEE #LAPEE/UFSC
Acesse no nosso Facebook e Instagram!!
4º Seminário Internacional – A epidemia e as drogas psiquiátricas
4º Seminário Internacional – A epidemia e as drogas psiquiátricas
O Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ informa que as inscrições estão abertas! O seminário acontece nos dias 05 e 06 de novembro de 2020.
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Será totalmente online e gratuito, contando com transmissão ao vivo e traduação simultânea. Serão dois dias de palestras, mesas-redondas, debates, a exibição de um filme que serão transmitidos pelo YouTube, além da feira online de Economia Solidária!
Educação Inclusiva, cidades e subjetividades
O que está em jogo com a nova Política Nacional de Educação Especial?
Em 30 de setembro de 2020 foi publicado o Decreto n° 10.502, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida[2]. O tema é “quente” e urge debatermos as alterações que este decreto produzirá no cotidiano escolar de crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência.
Para um melhor entendimento do que está sendo proposto, é prudente efetuar uma breve retomada histórica. Busquei ser sintética e restrita ao cenário nacional, evidenciando, contudo, que cada milímetro avançado em processos inclusivos foi conquistado – sempre! – por meio de árduas lutas travadas em searas sociais e políticas.
Foi somente com a Constituição Federal[3] que as pessoas com deficiência passaram a ter reconhecidos direitos integrais à Educação – referenciados, posteriormente, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[4] e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)[5]. Além disso, conferências internacionais, como a de Salamanca, em 1994, e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência, em 1999, ampliaram o debate inclusivo e, com base no modelo social das deficiências, lançaram olhares às peculiaridades e especificidades de aprendizado de todos/as os/as envolvidos/as no processo educativo. Este cenário de debates sociais e políticos culminou na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI)[6], em 2008.
A PNEEPEI assegura a inclusão escolar ao público da Educação Especial; reafirma sua transversalidade (da Educação Infantil à Superior); torna obrigatória a matrícula de estudantes com deficiência na rede regular de ensino, bem como a oferta das condições necessárias para que estes/as frequentem as aulas e obtenham êxito nos estudos; prevê a formação docente para o atendimento educacional especializado, bem como a qualificação dos demais educadores, com a participação da família e da sociedade.
Ilude-se quem acredita que a educação inclusiva beneficia exclusivamente as pessoas com deficiência – para tornar a sociedade mais solidária e tolerante é crucial a todos e todas (re)conhecer e respeitar a diversidade humana – e processos inclusivos devem ter início no âmbito escolar. Eu, pessoa sem deficiência, não tive colegas com deficiência no Ensino Fundamental e Médio, perdi a chance de me constituir como pessoa e cidadã tendo a diferença como parâmetro. A escola deve ser um lócus de aceitação da diversidade, da alteridade e da inclusão, posto configurar-se um ambiente plural por natureza, espaço educativo de constituição de sujeitos autônomos e críticos[7], mas esta perspectiva não está “dada”, pois a lógica dos sistemas de ensino é tradicionalmente marcada por uma visão determinista, mecanicista e reducionista.
A PNEEPEI resolveu e consolidou a inclusão escolar em nosso sistema de ensino? Não! Mudanças culturais, sociais e nos processos de formação docente levam tempo para darem bons frutos e demandam investimentos financeiros. Analisamos[8] em outro estudo os dez anos da implementação da PNEEPEI e evidenciamos progressos e a persistência de desafios, tais como aumentar os investimentos em infraestrutura nas instituições de ensino, investir em formação continuada para todos/as os/as profissionais da educação, fomentar trabalhos em equipe e ampliar o acesso dos/s estudantes aos apoios multiprofissionais, entre outros, visando qualificar o atendimento pedagógico inclusivo.
Mas afinal… o que está em jogo na nova a Política Nacional de Educação Especial? O título traz uma perspectiva “equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”, mas o texto do decreto é uma afronta a todas as lutas e conquistas que culminaram na PNEEPEI, pois este se contrapõe à uma ideia radicalmente inclusiva – radical no sentido de raiz, aquilo que dá a base e sustentação. Se escolas de ensino comum e salas de recursos multifuncionais fizeram avançar a educação inclusiva, sua substituta, na contramão, incentiva salas e escolas especiais, exclusivas às crianças com deficiência. Não garantir a permanência de estudantes com deficiência no ensino regular é nocivo para esta população porque eles/as se beneficiam muito – ou seja, aprendem e desenvolvem – com as dinâmicas escolares e com o convívio com os pares e é nocivo para toda a comunidade escolar porque deixamos de ter a diferença como um valor! Este retrocesso, ainda, contraria a Constituição Federal, o ECA, a LDBEN e as convenções e acordos internacionais das quais o Brasil é signatário. Ao invés de investir em formação docente, infraestrutura e apoios, segregam-se os/as estudantes com deficiência com base em apelos neoliberais!
Este decreto deve ser revisto/revogado, trazendo para o centro do debate as pessoas com deficiência, principais interessadas no assunto. Desde os anos 1970, o movimento “Nothing about us without us” (Nada sobre nós sem nós) vem fomentando a participação destas nos espaços que decidem as suas vidas. Educadores/as em geral, educadores/as especiais, pessoas com deficiência e suas famílias devem ser chamadas para deste debate – e ouvidas! Não podemos permitir retrocessos de 40 ou 50 anos nas lutas inclusivas.
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[1] Agradeço às colegas Juliana Silva Lopes e Marivete Gesser pela leitura crítica a este texto.
[2] BRASIL. Decreto n° 10.502/20. Brasília: Poder Executivo, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-setembro-de-2020-280529948. Acesso em 07 out.2020.
[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 07 out.2020.
[4] BRASIL. Lei n° 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em 07 out.2020.
[5] BRASIL. Lei n° 394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1996. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em 07 out.2020.
[6] BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16690-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192. Acesso em 07 out.2020.
[7] MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão Escolar: o que é? por quê? como fazer? 2. ed. Cotidiano escolar: ação docente. São Paulo: Moderna, 2006.
[8] DIOGO, Maria Fernanda; SILVA, Tábata Sell da. Dez anos da Política Nacional De Educação Especial na perspectiva de professores de escolas públicas. Anais do Colóquio Internacional de Educação Especial e Inclusão Escolar. Florianópolis: Galoá proceedings, 2019. Disponível em: https://proceedings.science/cintedes-2019/papers/dez-anos-da-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-de-professores-de-escolas-publicas. Acesso em 07 out.2020.
Mesa temática virtual – 06/10
A dica desta quinzena é a 3ª Mesa Temática Virtual da XIII ANPEd Sul, que tem como tema: “A mercantilização da ciência e da universidade: qual futuro para a pesquisa em educação?”.
Participarão da mesa o Prof. Dr. Ângelo Ricardo de Souza (UFPR), o Prof. Dr. Lucídio Bianchetti (UFSC), o Prof. Dr. Rodrigo Dias da Silva (UNISINOS), com a mediação do Prof. Dr. Cláudio Almir Dalbosco (UPF). O debate acontecerá hoje (dia 06/10), das 15h às 17h, e será transmitida pelo Youtube da ANPEd Nacional e Facebook da ANPEd Sul. Vale conferir!
Facebook ANPEd Sul:
https://www.facebook.com/258318787651680/posts/1910650312418511
Youtube ANPEd Nacional:
Sobre ser psicóloga na escola
A criança problema. Os estudantes sem pré-requisitos. Os professores horistas. Os atores educacionais solitários. As barreiras construídas entre professores e alunos. O currículo precisa ser cumprido. A escola sem recurso. Embora denunciado, sendo em alguns níveis superados, este cenário coexiste na minha e na sua realidade de trabalho.
A vasta e histórica produção de saberes por uma atuação crítica em psicologia escolar tem nos sustentado no processo de conhecer o chão da escola e buscar coletivamente transformá-lo até aqui. Porém, nós sabemos que não é uma tarefa fácil e nem exclusiva da psicologia.
A nossa formação, por sua vez, nem sempre evidencia todas as contribuições oferecidas pela psicologia escolar. Isso torna o nosso caminhar, por um lado solitário e incerto, e de outro, convidativo para ocuparmos os entre lugares construídos ao longo dos nossos processos formativos e das nossas vivências na escola. Penso que perceber isso também faz parte da concepção acerca do nosso papel de psicóloga nesse contexto.
Entre saberes e fazeres, vamos tomando nota das marcas que nos afetam no cotidiano da escola. Este espaço, embora não represente o único contexto da nossa atuação, carece de ser ocupado por nossas contribuições no âmbito da promoção e da mediação de processos de desenvolvimento para uma formação humana e cidadã. Então, precisamos permanecer atentas sobre o que fazemos, como fazemos e o que estamos (re)produzindo na nossa caminhada na escola.
Nesse sentido, entendo que temos algo a fazer pelo hoje que aguardou quase vinte anos para nos garantir o direito de trabalhar na escola[1]. Cabe a nós, psicólogas, lembrarmos que -, a criança problema; os estudantes sem pré-requisitos; os professores horistas; os atores educacionais solitários; as barreiras construídas entre professores e alunos; o currículo precisa ser cumprido; a escola sem recurso –, seguiu coexistindo neste espaço.
Portanto, para além do combate da superação desta realidade, também é preciso compreender que a autoria desses problemas se estabeleceu na relação entre os nossos atores educativos. Assumir posturas que rompam com as polarizações sobre o que é feito e sobre o que não se faz a psicóloga escolar é um caminho para nos livrarmos das culpas, generalizações e análises aligeiradas sobre a complexidade da trama que constitui o espaço escolar. O nosso momento pede para acolhermos quem chegará para compor conosco e trabalharmos juntas em favor de uma atuação crítica, a partir da vivência na e pela escola, para seguirmos como agentes históricos e politicamente ativos diante do organismo vivo que é a nossa escola.
[1] A Lei 13.935/2019 dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica.